Possibilidade negativa de pedido de certidões em bloco, como forma de proteger a privacidade dos titulares dos dados contidos nos atos notariais, evitando o tratamento de dados de forma indevida.
Introdução
Uma das principais finalidades da função notarial é a atribuição de publicidade aos atos e negócios jurídicos de maior relevância para a sociedade, para tanto o notário analisa os fatos e negócios jurídicos que lhe são apresentados dando forma jurídica, levando em consideração os aspectos objetivos e subjetivos dos elementos formadores do título que servirão de suporte para ingresso no sistema registral, com a finalidade de garantir segurança para as partes envolvidas, bem como publicidade para a sociedade em geral.
A atividade notarial no Brasil, por força de disposição constitucional prevista no artigo 236 da Constituição Federal, é exercida em caráter privado, por delegação do poder público. Assim, os notários e registradores são particulares que atuam em colaboração com a Administração Pública. Nota-se que embora exercida em caráter privado, a atividade constitui-se em serviço público.
O STF, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.602, decidiu que os serviços notariais e registrais são serviços públicos exercidos em caráter privado, considerando os notários e registradores como particulares que atuam em colaboração com a Administração Pública.
A lei 8.935/94, dispõe que o notário é o profissional do direito, dotado de fé pública, cujos serviços são prestados de modo a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, competindo a este profissional a formalização jurídica da vontade das partes; intervenção nos atos e negócios jurídicos a que as partes devam ou queiram dar forma legal ou autenticidade, autorizando a redação ou redigindo os instrumentos adequados, conservando os originais e expedindo cópias fidedignas de seu conteúdo; autenticação de fatos (artigo 6º).
Da publicidade notarial
Garantir a publicidade é uma das finalidades da atividade notarial, por meio dela busca-se dar conhecimento aos fatos e atos jurídicos que impactarão a sociedade de alguma forma, por essa razão surge a necessidade de se garantir que haja um conhecimento efetivo por todos, para que, por meio de uma solenidade específica, o resultado da exigência normativa (conhecimento jurídico) seja atingido (BRANDELLI, 2016, p. 75). A publicidade possui o espoco de difundir, propagar e trazer notoriedade a um fato ou acontecimento, seja ele público ou privado (RODRIGUES, 2014, p. 265).
A escritura pública é o instrumento público lavrado pelo Tabelião em seus livros de notas, cuja finalidade é a aquisição, resguardo, transferência, modificação ou extinção de ato, ato-fato ou negócio jurídico. Com efeito, a escritura pública, lavrada em notas do tabelião, é documento dotado de fé pública, fazendo prova plena (art. 215 do Código Civil).
Por meio da publicidade, informações sobre atos notariais, como escrituras, testamentos e procurações, tornam-se de conhecimento público, garantindo a autenticidade e validade desses documentos. Isso promove a confiança nas transações e na atuação dos notários, já que a atividade precípua é conferir segurança, autenticidade e eficácia aos atos jurídicos, por meio da autenticação e na certificação de documentos legais.
Enquanto a publicidade registral está no plano da eficácia do negócio jurídico, seja com o objetivo de constituir o direito real (efeito constitutivo), ou como forma de garantir oponibilidade em relação a terceiros, a publicidade notarial está voltada para o plano de validade.
A publicidade dos atos notariais se inicia após o lançamento do ato ou negócio jurídico no livro de notas e após o arquivamento dos documentos utilizados para a lavratura da escritura pública. Nas palavras de Kümpel (2017, p. 196): “a publicidade é informativa, ou seja, todo ato notarial e documento arquivado no tabelionato é público”.
No âmbito da atividade notarial a publicidade é a regra para os atos lançados no livro de notas e para documentos arquivados, assim, as partes, ao optar pela utilização dos serviços notariais, regidas pela autonomia privada, se submetem às regras da publicidade próprias dos atos notariais, podendo ser extraídas certidões dos atos lavrados a terceiros, independentemente de justificativa.
Do princípio da privacidade aplicado ao serviço notarial
A Emenda Constitucional 115/22 incluiu no texto constitucional o direito fundamental, previsto no artigo 5º, inciso LXXIX, que dispõe que “é assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais.”
A privacidade é vista como um componente intrínseco da dignidade, pois permite que as pessoas se protejam contra a interferência indevida em suas vidas e preservem sua integridade pessoal. Ela garante o direito de uma pessoa de controlar suas informações pessoais, bem como suas interações e espaços pessoais. Essa capacidade de controlar o acesso a informações pessoais e a sua própria esfera de intimidade é essencial para que as pessoas desenvolvam sua individualidade e se sintam seguras em suas vidas cotidianas.
Com a entrada em vigor da lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD (lei 13.709/18), o Brasil estabeleceu um marco legal abrangente para a proteção de dados pessoais. Inspirada no Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia – GDPR, a LGPD entrou em vigor em setembro de 2020 e trouxe consigo uma série de mudanças significativas relacionadas ao tratamento de dados pessoais.
A proteção de dados pessoais é uma preocupação crescente, com a LGPD no Brasil estabelecendo diretrizes para a coleta e o tratamento de informações pessoais.
A LGPD trouxe a previsão de proteção dos dados, reconhecendo que estes também se caracterizam como atributos do direito da personalidade, já que são elementos individualizadores da pessoa humana, atributos que revelam, na sociedade da informação, elementos e características importantes do ser humano, por isso ele deve ser adjetivado como pessoal, caracterizando-se como uma projeção, extensão ou dimensão do seu titular (BIONI, 2020, p.56). O princípio da privacidade é reconhecido como um direito fundamental, protegendo a autonomia, a dignidade e a liberdade individual.
Dos pedidos de certidões em bloco, a proteção da privacidade e a publicidade mitigada
Em adequação aos princípios constitucionais da proteção de dados pessoais e da privacidade, a CNJ editou o provimento 134/22, atualmente, disciplinado pelo CÓDIGO NACIONAL DE NORMAS DA CORREGEDORIA NACIONAL
DE JUSTIÇA – FORO EXTRAJUDICIAL (CNN/CN/CNJ-EXTRA) que estabelece medidas a serem adotadas pelas serventias extrajudiciais em âmbito nacional para o processo de adequação à LGPD.
Por esse provimento, a publicidade dos atos notariais e registrais sofre mitigação, já que “na emissão de certidão o Notário ou o Registrador deverá observar o conteúdo obrigatório estabelecido em legislação específica, adequado e proporcional à finalidade de comprovação de fato, ato ou relação jurídica” (artigo 21). O referido provimento atribuiu ao Notário ou Registrador o dever de verificar se o pedido de emissão de certidões é adequado, necessário e proporcional à finalidade pretendida pelo terceiro solicitante.
A normativa administrativa acima citada não é contrária ao disposto no artigo 17 da lei 6015/73, mas sim traz uma aplicação sistêmica do direito de requerimento de certidões dos registros públicos, com o direito fundamental à proteção dos dados pessoais, bem como à privacidade.
De tal previsão normativa administrativa é possível se extrair que a publicidade dos atos notariais na atualidade deixou de ser plena, absoluta e imotivada, pois a obtenção de certidões dos atos a terceiros poderá ser recusada se não preenchidos os requisitos de adequação, necessidade e proporcionalidade, ou seja, a publicidade na atividade notarial é mitigada.
Com relação aos pedidos de Certidões em bloco, ou seja, pedidos de certidões de atos indistintos, envolvendo uma gama indeterminada de atos notariais, a Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo, em sua atuação normativa, impôs restrições à publicidade dos atos quando os requerimentos de certidões ou informações forem efetuados em bloco.
Com efeito, dispõe as Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo, Tomo II, Capítulo XIII, item 144.2 que deverão ser negadas estes tipos de solicitações, especialmente quando não demonstra a pertinência da finalidade do pedido, conforme se observa in verbis:
144.2 Serão negadas, por meio de nota fundamentada, as solicitações de certidões e informações formuladas em bloco, relativas a registros e atos notariais relativos ao mesmo titular de dados pessoais ou a titulares distintos, quando as circunstâncias da solicitação indicarem a finalidade de tratamento de dados pessoais, pelo solicitante ou outrem, de forma contrária aos objetivos, fundamentos e princípios da lei 13.709, de 14 de agosto de 2018.
Conforme bem delineado pelo Dr. Marcelo Benacchio, MM Juiz de Direito do Estado de São Paulo, nos autos do Pedido de Providências 0028949-93.2021.8.26.0100, 2ª Vara de Registros Públicos da Capital, o pedido em bloco de certidões deve ser muito bem fundamentado, de forma proteger os dados pessoais contidos nos atos notariais, conforme se observa abaixo:
Com efeito, destaque-se que a obtenção das certidões relativas a atos notariais, por terceiros, quando solicitada de atos em bloco, deve ser bem fundamentada, a fim de afastar indícios de mero tratamento de dados privados, finalidade diversa dos registros públicos.
Assim é possível se afirmar que, com relação aos pedidos de informações e certidões feitos em bloco, a LGPD, a doutrina e os órgãos administrativos correcionais da atividade notarial, por meio dos atos normativos para a execução dos serviços, traz a importância da demonstração do legítimo interesse pelo requerente, para a aplicação do princípio da publicidade notarial.
Não demonstrando o requerente que o pedido para a expedição de certidões em bloco é adequado, necessário e proporcional, com a apresentação de motivos bem fundamentados, deve o Tabelião de Notas negar o pedido, como forma de proteger a privacidade dos titulares dos dados contidos nos atos notariais, evitando o tratamento de dados de forma indevida.
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BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de Dados Pessoais: a função e os limites do consentimento. 2ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 2021.
BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: Eficácia Material. Rio de Janeiro, Forense, 2016.
KÜMPEL, Vitor Frederico. et. al. Tratado Notarial e Registral vol. III. 1ª ed. São Paulo: YK Editora, 2017.
RODRIGUES, Marcelo. Tratado de Registros Públicos e Direito Notarial. São Paulo, Atlas, 2014.
Fonte: Migalhas