A Lei nº 14.711/2023, em seu artigo 7º- A, inciso III proporcionou ao notário, ainda que não exclusivamente, o incremento de atuar como árbitro, estando sujeito ao regramento próprio da arbitragem previsto na Lei 9.307/96 (e de regramento administrativo ainda pendente da atuação pelo Conselho Nacional de Justiça — até para formação das Câmaras e funcionamento).
O avanço legislativo é louvável, reconhecendo o legislador a plena viabilidade de ampliar as atribuições da atividade extrajudicial para além das situações sem conflitos, sem litígios, em decorrência da notória capilaridade da atividade extrajudicial e sua capacidade técnica para bem servir a sociedade e a Justiça brasileira.
Diante do atual quadro legal disposto na Lei 8.935/94, sem descarte de demais leis em vigor, o tabelião de notas atuará em situações de falta de litígio (como nos contratos típicos e atípicos, inventários e demais atos e negócios jurídicos harmoniosos) como atividade típica advinda da própria Constituição (artigo 236), bem como poderá ser escolhido pelas partes para dirimir conflitos oriundos de relação patrimonial privada, atuando como árbitro da contenda entre os envolvidos (Lei 8.935/94, artigo 7º-A, III).
Em que pese o tema ainda pender de melhor desenho estrutural-administrativo em âmbito nacional para sua plena aplicabilidade, obviamente perante o CNJ, há de se reconhecer grande avanço legislativo no sentido de proporcionar mais uma porta de acesso ao cidadão na busca de pleitear seus direitos – advindos ou não de conflitos de interesses.
Afinal, existem dois tipos de processos em curso no país:
- Aqueles que envolvem problemas insolúveis na esfera extrajudicial, independentemente de qualquer litígio e que infelizmente exigem a atuação do Estado juiz – como, por exemplo a alteração de regime de bens dos cônjuges, de comum acordo, como um procedimento de jurisdição voluntária a cargo do magistrado;
- Os conflitos de interesses que envolvem direitos disponíveis e indisponíveis, situações típicas que exigem a interferência do Estado juiz para solução da tensão jurídica estabelecida entre as partes envolvidas no embate. O modelo da arbitragem encontra encaixe jurídico-processual nesse tipo de demanda, conforme dispõe a Lei da Arbitragem em seu artigo 1º, “as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis. As partes interessadas podem submeter a solução de seus litígios ao juízo arbitral mediante convenção de arbitragem, assim entendida a cláusula compromissória e o compromisso arbitral (Art. 3º)”.
Situações previstas na lei
O legislador brasileiro optou, de maneira clara e convicta no artigo 7º-A, III, da Lei dos Cartórios, em ampliar o leque de atribuições extrajudiciais facultando às partes conflitantes a opção de discutirem suas diferenças contratuais no âmbito da arbitragem perante um árbitro notário, que, devidamente nomeado, poderá ser invocado pelos interessados para tomada de decisão definitiva para o caso.
Em breve resumo, dentro do tema em exame, o modelo de acesso ao cidadão ao sistema de concessão de direitos-obrigações (com ou sem conflito, advindo a decisão do consenso das partes ou da imposição da decisão por terceira pessoa) pode ser assim apresentado:
a) Situações sem litígio com autorização normativa ou legislação vigente: atuará o Poder Judiciário mediante provocação dos interessados (nas hipóteses obrigatórias ou facultativas indicadas pela Lei) ou o serviço extrajudicial (como ocorre em tantas hipóteses já contempladas em diplomas nacionais vigentes, por exemplo: usucapião extrajudicial, adjudicação extrajudicial, inventário, partilha, divórcio, expedição de carta de sentença, feitura de contratos típicos e atípicos, dentre outras funções);
b) Situações com litígio envolvendo direitos indisponíveis e/ou inexistência consenso prévio de arbitragem: competirá ao Poder Judiciário, exercer tipicamente sua função estatal e por meio dos magistrados competentes substituir a vontade das partes pela imposição de um decreto decisório judicial.
c) Situações com litígio envolvendo direitos patrimoniais disponíveis, com pessoas capazes e previsão de solução da controvérsia por juízo arbitral mediante convenção de arbitragem, assim entendida a cláusula compromissória e o compromisso arbitral: competirá ao árbitro designado/nomeado, nos termos da Lei da Arbitragem, profissional privado ou notário, conforme regramento previsto na Lei dos Cartórios (ainda que pendente regramento administrativo especifico pelo CNJ) exercer a atividade de distribuição de justiça no caso concreto, ou seja, após regular instrução do litígio decidir fundamentadamente em favor da parte lesada;
O panorama apresentado acima parece claro quanto aos anseios do legislador, ou seja, estabelecer um novo paradigma de administração da Justiça e inspirar o desenvolvimento de um programa estatal que introduzisse e estimulasse no ordenamento jurídico pátrio mecanismos inovadores e capazes de prover a solução dos conflitos no Brasil com maior eficiência e celeridade, contando para isso com a força técnica e distribuição geográfica nacional generosa dos notários para atender aos mais diversos conflitos que assombram um país cheio de litígios.
Mão dupla?
O que se mostra pendente de enfrentamento é se o sistema criado de inclusão do notário no procedimento da arbitragem também pode ser utilizado em mão dupla, ou seja, os árbitros podem exercer atividades notariais por escolha das partes?
Inúmeras são as razões para que a resposta seja negativa. É inviável a mera cogitação de um sistema de mão dupla, ou seja, entrega da atividade notarial aos árbitros quando houver interesses patrimoniais disponíveis e inexistir litígio entre as partes capazes.
Primeiro, pois a atividade extrajudicial por previsão constitucional disposta no artigo 236 estabelece que o serviço extrajudicial é delegado ao particular em colaboração com o Estado, devidamente aprovado em concurso público, com atuação dentro da competência legal e administrativa que lhe é conferida — o que por si só afasta toda e qualquer competência extrajudicial ao árbitro privado. Afinal, tratando-se de serviço público delegado ao notário é indispensável dizer que está subordinado ao poder correcional do Poder Judiciário (tanto na fiscalização e orientação, como também na seara punitiva);
Segundo, que a Lei dos Cartórios (8.935/94) apenas criou uma atribuição a mais ao notário e sequer expandiu ou reformatou o papel do árbitro e da Lei de Arbitragem;
Terceiro, a atuação dos notários no exercício de sua atividade típica é remunerada por emolumentos (tributo estatual de receita multifracionada, conforme previsão legal de cada estado da federação) sem disposição de preço livre pactuado entre os litigantes, motivo que afasta a viabilidade de uma cláusula compromissória ou um compromisso arbitral entre os litigantes que se amolde dentro do sistema de remuneração voluntariamente prevista. Vale salientar fortemente que tendo os emolumentos natureza jurídica de tributo não pode ser fixado por vontade dos particulares valores livres ou qualquer fixação aleatória (atrelada ao contrato ou bem jurídico em disputa) por afronta ao princípio da legalidade.
Em arremate argumentativo, conforme breve compilação dos principais artigos da Lei 9307/06 (a seguir negritados e citados) a atuação da arbitragem é exclusivamente para situações de litígio, o que se distancia sobremaneira da atividade precípua do serviço extrajudicial, que em todas as suas normativas legais e administrativas pretéritas se concentra na conferência de atribuições extrajudiciais em que não existam embates para entrega do direito buscado ao cidadão. Vale mencionar em reforço da construção própria da arbitragem os seguintes artigos legais dispostos na Lei da Arbitragem:
– As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis (art. 1°).
– As partes interessadas podem submeter a solução de seus litígios ao juízo arbitral mediante convenção de arbitragem, assim entendida a cláusula compromissória e o compromisso arbitral (Art. 3º).
A cláusula compromissória é a convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato (Art. 4º).
– O compromisso arbitral é a convenção através da qual as partes submetem um litígio à arbitragem de uma ou mais pessoas, podendo ser judicial ou extrajudicial (Art. 9º).
Conclusão
Ou seja, não há qualquer similitude nas atividades do árbitro privado e do notário, mas mera ampliação de atribuição aos últimos mencionados.
Extirpando qualquer confusão que se possa fazer, o que ocorreu foi uma mera ampliação de atribuição ao extrajudicial de uma atividade conferida até então a um árbitro privado, e não uma “notarização do árbitro privado” ou qualquer ampliação de competência ao modelo da arbitragem, ilações que seriam flagrantemente inconstitucionais — por afronta direta ao disposto no artigo 236 da CF.
Fonte: Conjur