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Luiz Carlos Weizenmann

A competência territorial do tabelião de notas encontra-se regulada pela Lei 8.935/94. O art. 8º diz que as partes são livres para escolha do tabelião de notas e o art. 9º estabelece que o notário somente poderá praticar atos dentro dos limites do Município para o qual recebeu a sua delegação.

No entanto, em 26 de maio de 2020 houve a publicação do Provimento N° 100/20 do Conselho Nacional de Justiça, dispondo sobre a prática de atos notariais eletrônicos utilizando a plataforma do e-Notariado, criando a Matrícula Notarial Eletrônica-MNE e dando outras providências. Dentre elas criou regras de competência específicas para determinados atos notariais eletrônicos, o que tem causado divergência de interpretação.

No intuito de fomentar o debate, passo a fazer as considerações que seguem, decorrentes da minha modesta interpretação sobre o tema.

É clara a intenção do provimento ao estabelecer restrições territoriais, pois consta expressamente dos “Considerandos”:  “CONSIDERANDO a necessidade de evitar a concorrência predatória por serviços prestados remotamente que podem ofender a fé pública notarial”.

Percebe-se a preocupação com a concorrência predatória que naturalmente poderia ocorrer se os atos eletrônicos fossem liberados.

O Provimento se ocupa da competência territorial em dois artigos, art. 19 e art. 20. Mas, antes de adentramos diretamente nos comentários sobre os mesmos, convém antecipar a questão relativa aos documentos híbridos. 

Do documento híbrido 

Diz o art. 30 do Provimento 100/2020 que “Fica autorizada a realização de ato notarial híbrido, com uma das partes assinando fisicamente o ato notarial e a outra, a distância, nos termos desse provimento.”

Neste caso estamos falando de uma escritura pública em que uma das partes assina o documento de próprio punho na escritura impressa e outra parte o assina através de seu certificado digital.

Quanto a competência, não há outra opção que não seja a do tabelião em que a escritura fora lavrada e assinada presencialmente e de próprio punho por uma das partes. Isto porque a escritura será lavrada no livro de papel (não eletrônico) e assinado presencialmente. A outra parte, que assinará com seu certificado digital, remotamente, o fará no documento eletrônico extraído da folha do livro.

Neste caso não se aplica nem a competência do local do imóvel (se for o caso) e nem do domicílio de quem quer que seja. A competência se dará pelo art. 8º da Lei 8935/94.

Ressalte-se que nesta situação, haverá a folha do livro e no local da assinatura remota constará a certificação do notário que esta foi feita remotamente por certificação digital, cuja captação da vontade se deu por videoconferência, de conformidade com o documento eletrônico arquivado.

Das escrituras públicas de alienação de imóveis 

O art. 19 assim dispõe:

Art. 19. Ao tabelião de notas da circunscrição do imóvel ou do domicílio do adquirente compete, de forma remota e com exclusividade, lavrar as escrituras eletronicamente, por meio do e-Notariado, com a realização de videoconferência e assinaturas digitais das partes. (grifei)

Como se pode ver, este artigo criou regra de competência especial para escrituras públicas eletrônicas relativas a imóveis. A competência neste caso é do notário da localização do imóvel ou o domicilio do adquirente. Então, restringe-se às escrituras de “transmissão de imóveis”.

Isso porque está falando expressamente do tabelião da “circunscrição” do imóvel ou do domicílio do “adquirente”.  Não há dúvidas que se refere a alienação de imóveis. Nada mais.

O parágrafo primeiro vai adiante:

§1º Quando houver um ou mais imóveis de diferentes circunscrições no mesmo ato notarial, será competente para a prática de atos remotos o tabelião de quaisquer delas. (grifei)

Fato que pode ser comum, a existência de imóveis de diferentes municípios em uma mesma escritura de transmissão de bens imóveis, mas deve-se levar em conta o disposto no §2º a seguir. Portanto, o §1º refere-se a imóveis situados em estados diferentes. Neste caso, será competente o tabelião de qualquer município de localização de um dos imóveis.

Como já referido, o parágrafo segundo abre uma exceção ao anterior:

§2º Estando o imóvel localizado no mesmo estado da federação do domicílio do adquirente, este poderá escolher qualquer tabelionato de notas da unidade federativa para a lavratura do ato.

Sendo assim, se o imóvel estiver situado no mesmo estado do domicílio do adquirente, este poderá escolher o tabelião de qualquer município, independentemente da localização do imóvel ou do seu domicílio.

O parágrafo seguinte ocupa-se da definição da expressão “adquirente”, para fins do Provimento, dizendo:

§3º Para os fins deste provimento, entende-se por adquirente, nesta ordem, o comprador, a parte que está adquirindo direito real ou a parte em relação à qual é reconhecido crédito. (grifamos)

De fácil conclusão que se está a falar de escrituras de transmissões de direitos reais e com a emenda para escrituras de concessão de crédito. Neste caso surge a dúvida quanto à sua interpretação, senão vejamos.

O artigo todo remete às escrituras relativas à imóveis, portanto, quando fala à parte a qual é reconhecido crédito, certamente está falando de crédito imobiliário.

Assim, percebe-se que não está tratando de escrituras de concessão de crédito que não tenha imóveis como garantia. A interpretação lógica é de que concessões de crédito sem garantia ou com garantias fidejussórias e pignoratícias a competência é a estabelecida no art. 8º da lei 8.935/94.

Da ata notarial

O artigo 20 do Provimento se ocupa da competência para lavratura de atas notariais e de procurações eletrônicas, dizendo:

Art. 20. Ao tabelião de notas da circunscrição do fato constatado ou, quando inaplicável este critério, ao tabelião do domicílio do requerente compete lavrar as atas notariais eletrônicas, de forma remota e com exclusividade por meio do e-Notariado, com a realização de videoconferência e assinaturas digitais das partes.

O caput refere inicialmente que compete ao tabelião da circunscrição do fato constatado, para lavratura de atas notariais eletrônicas. Neste ponto, segue a regra do artigo 8º da Lei 8935/94, pois se o fato a ser constatado exige diligência ao local, certamente o tabelião competente é o do local do fato, em razão do que dispõe o art. 9º da mesma lei.

Refere, também, que quando inaplicável o quesito do fato constatado, a competência será do tabelião do domicílio do solicitante, para atas notariais eletrônicas.

Conclui-se, então, que se o solicitante se encontrar em algum município (e não o estado) que não o do seu domicílio, deverá entrar em contato com o Tabelião do local do seu domicílio. Isso se aplicaria somente a atas cujo o teor a ser narrado possa ser acessado remotamente pelo notário, como atas de páginas eletrônicas ou documentos armazenados eletronicamente.

Mas, deve-se levar em conta que há casos em que não haveria esta possibilidade, como por exemplo quando o fato a ser narrado encontra-se no telefone celular do solicitante. Para isso, o tabelião deverá ter o telefone em mãos para certificar seus dados e acessar. Assim, o solicitante, não estando em seu domicílio, deverá procurar o Tabelião da cidade onde se encontra. Não seria crível imaginar que o interessado devesse descolar-se para o município de seu domicílio para realização da ata.

O mesmo ocorre, por exemplo, para acesso de documentos armazenados em computadores e que não há possibilidade de acesso remoto.

Nos dois casos previstos no art. 20 há a necessidade de videoconferência e obviamente a assinatura eletrônica.

Da procuração pública

O parágrafo único trata da procuração pública eletrônica, estabelecendo que é competente o tabelião do domicílio do outorgante, ou do imóvel, se for o caso.

Art. 20.  (…)

Parágrafo único. A lavratura de procuração pública eletrônica caberá ao tabelião do domicílio do outorgante ou do local do imóvel, se for o caso.

Temos aqui um problema de técnica legislativa, porque o caput do artigo trata da ata notarial e o parágrafo único muda de assunto, tratando da procuração. O parágrafo de um artigo é a sua complementação. Segue o mesmo tema.

Conforme a técnica legislativa o parágrafo “é a fórmula de umas das divisões do artigo. Deve completar o sentido ou abrir exceções à norma contemplada no caput do artigo.”1

Neste sentido a Portaria GM Nº 776/20172, que estabelece normas e diretrizes para a elaboração, redação, alteração, revisão e consolidação de atos normativos no âmbito do Ministério da Justiça e Segurança Pública, refere:

“5.2. Parágrafos

Os parágrafos constituem, na técnica legislativa, a imediata divisão de um artigo, sendo disposição secundária de um artigo em que se explica ou modifica a disposição principal.” (grifei)

Ainda a Lei Complementar 95/98, que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal, e estabelece normas para a consolidação dos atos normativos que menciona, diz em seu art. 11, III, a: 

Art. 11. As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas:

(…)

III – para a obtenção de ordem lógica:

(…)

c) expressar por meio dos parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida; (grifei)

Por estes motivos temos que o parágrafo único do art. 20 deveria ser um novo artigo, pois trata da competência para lavratura de procurações, que não é o assunto referido no seu caput.

Mas, está no Provimento e quanto ao seu dispositivo não há maiores questionamentos. No entanto, deve-se resolver a questão de mandatos outorgados por outorgantes domiciliados no exterior. Como surge a possibilidade da lavratura da procuração por videoconferência, em tese deve ser possível a outorga por pessoa residente no exterior, e que poderá não ter domicílio no Brasil.

Neste caso, se a pessoa tem seu domicílio no exterior estaria livre para escolher o notário de sua confiança em qualquer parte do território nacional, na forma do art. 8º da lei 8935/94.

Por outro lado, se a procuração, neste caso, referir-se a imóvel, a competência está determinada e será a do local do imóvel.

Da comprovação do domicílio

Na sequência o provimento trata da forma de comprovação do domicílio (art. 21), que obviamente é o domicílio legal.  Mas, no inciso I se ocupa da pessoa jurídica, dizendo ser o da sede da matriz.

Alternativamente prevê o local da sede da filial em relação aos negócios praticados no local desta o que segue o conceito de domicilio constante do Código Civil. 

Aqui pode haver problemas de interpretação. Como o inciso fala da sede da matriz ou da filial em relação a negócios praticados no local desta, a interpretação lógica é que se trata de uma opção da empresa. Utilizar o da matriz ou da filial.

Perceba-se que se trata de uma faculdade deferida à pessoa jurídica e não uma determinação. Assim, a pessoa jurídica, por seus administradores, escolhe qual dos dois locais realizará a procuração

Em se tratando de pessoa física, a comprovação do domicílio se dará através do título de eleitor ou outro domicílio comprovado. Há uma alternativa.

O Código Civil estabelece o conceito de domicílio em seus artigos 70 a 74, que podem ser os mais variados. Portanto, a análise deverá seguir a regra do CC e qualquer um destes poderá fixar a competência.

Por fim, o parágrafo único direciona a solução quando da dificuldade de identificação do domicílio, dizendo que em havendo imóvel seria o local deste o definidor.

Finaliza, mencionando a possibilidade de convênios com órgãos oficiais para que os notários possam, de forma mais rápida e segura, identificar o domicílio das partes, o que pode ser benéfico, para que se evite dúvidas.

O problema

A competência do notário é estabelecida pela Lei 8.935/94. As disposições do Provimento 100, relativas à competência, criam novas regras, restringindo a liberdade de escolha preconizada no art. 8º da lei.

O debate a ser enfrentado é quanto aos efeitos de um ato lavrado de conformidade com a Lei 8935, mas desconforme com o Provimento.

O provimento não dispõe sobre este tema, portanto, em tese, o documento lavrado em desconformidade com o Provimento, no que se refere à competência, mas de acordo com a lei 8935, teria validade.

Para que se evite discussão e prejuízo às partes, deve-se enfrentar o tema expressamente, regulando os seus efeitos através de orientações para fins de uniformização dos procedimentos.

Das nulidades

O art. 36 determina expressamente a vedação de prática de atos notariais eletrônicos sem a utilização da plataforma do e-Notariado, mas sem regular os efeitos do seu descumprimento. Não há dúvidas quanto às sanções administrativas, mas não se pode dizer o mesmo quanto aos efeitos legais do ato lavrado, o que também mereceria atenção, com manifestação expressa destes efeitos quanto ao ato.

Finalizando, o parágrafo único do art. 37 apresenta uma aparente ilegalidade, porque comina de “nulidade” um ato notarial lavrado sem o “selo de fiscalização”. Não parece ser uma assertiva com sustentação legal, uma vez que o selo não pode ser considerado item essencial, pois não é requisito legal de escrituras públicas (lei 7433/85, Código Civil, art. 215).

O Código Civil estabelece os requisitos para a validade do negócio jurídico:

Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:

I – agente capaz;

II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável;

III – forma prescrita ou não defesa em lei.

Quanto ao negócio jurídico nulo, o Código Civil estabelece:

Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando:

I – celebrado por pessoa absolutamente incapaz;

II – for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto;

III – o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito;

IV – não revestir a forma prescrita em lei;

V – for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade;

VI – tiver por objetivo fraudar lei imperativa;

VII – a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção.

Como se pode ver, a falta do selo de fiscalização não se enquadra em qualquer dos requisitos exigidos pelo artigo acima.

O parágrafo poderia prever sanções administrativas ao notário que lavrar ato sem a referência ao selo, mas não a previsão de nulidade. O selo estaria “anulando” a vontade das partes. Seria mais potente que a própria manifestação de vontade e assinaturas das partes e do notário. O que não parece ser razoável.

Demais atos notariais

O artigo 19 acima mencionado é excludente. Sendo assim, todo e qualquer ato notarial que não diga respeito a imóveis, afora a ata notarial e procuração do art. 20, poderá ser lavrado eletronicamente em qualquer tabelionato do país, sendo livre às partes a escolha do notário.

Assim é, inclusive, para inventários e divórcios sem partilha de bens, testamentos, pactos antenupciais, etc.

Considerações finais

O objetivo deste trabalho foi realizar um breve arrazoado sobre a polêmica questão da competência notarial decorrente do Provimento Nº 100 do CNJ, na tentativa de colaborar para um debate mais amplo.

Deve-se ter presente que a norma administrativa criou novas regras de competência territorial aos notários especificamente para atos eletrônicos, pelas razões expostas.

O importante é buscar sempre a uniformização dos procedimentos nas atividades notariais, para que se evite interpretações diferenciadas o que pode resultar em informações distorcidas aos usuários dos serviços.

Com o e-notariado a atividade notarial avança e se adapta aos novos tempos, como tem feito ao longo da história, o que de certa forma explica a sua longevidade.

__________

1 Disponível aqui. Acesso em 04.05.2021.

2 Disponível aqui. Acesso em 04.05.2021.

Luiz Carlos Weizenmann: Advogado, Especialista em Direito Notarial e Registral pela UNISINOS/RS; autor de livros em coautoria e artigos; Professor; acadêmico da Academia Notarial Brasileira-ANB.

Fonte: Migalhas

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