O ano de 2025 será lembrado como um divisor de águas no debate sobre a tokenização imobiliária no Brasil. O que começou como uma promessa tecnológica de democratização do acesso ao mercado imobiliário transformou-se rapidamente em uma crise institucional que expôs as tensões entre inovação financeira, segurança jurídica e competências regulatórias.
Neste texto, analisaremos os eventos deste ano até à recente suspensão judicial da Resolução Cofeci nº 1.551/2025, que pretendia regulamentar as “transações imobiliárias digitais”, com o redirecionamento do debate para o Poder Legislativo e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Conceito de propriedade digital
A tokenização imobiliária insere-se em um movimento global conhecido como tokenização de ativos do mundo real — real world assets (RWA) —, um processo mediante o qual ativos físicos ou financeiros tradicionais são representados digitalmente por meio de tokens registrados em redes descentralizadas.
Nesse contexto, encontramos o conceito de propriedade digital, por meio da qual investidores com diferentes capacidades financeiras adquiram participações fracionadas em imóveis de alto valor, com transações executadas “em minutos” e “poucos cliques”. Entretanto, essa maior eficiência e melhor experiência de usuário trazem consigo uma complexidade jurídica fundamental: a expressão “propriedade digital” é juridicamente ambígua, pois sugere a transferência do domínio pleno do imóvel, um direito real que, por força do ordenamento jurídico pátrio, somente se consolida mediante registro na matrícula do Cartório de Registro de Imóveis.
Na prática, contudo, a maioria das estruturas atuais de tokenização transfere direitos obrigacionais (créditos) ou participações em entidades jurídicas que detêm o imóvel, não a propriedade em si. Essa dissonância entre a percepção criada pelo marketing e a realidade jurídica do ativo adquirido constitui uma fonte primária de risco para o investidor, que pode acreditar estar comprando uma fração do imóvel quando, na verdade, está adquirindo um direito que lhe dá “apenas” a experiência de um direito real, com todas as suas dimensões (usar, fruir e dispor do bem imóvel), mesclada com a essência de um produto financeiro se o token oferecer rendimentos de aluguéis e outros rendimentos.
Arquitetura jurídica da tokenização: ‘condomínios’ digitais e alienação fiduciária
Para viabilizar a tokenização de imóveis, a arquitetura típica envolve a transferência do imóvel para uma sociedade de propósito específico (SPE), criada exclusivamente para deter aquele ativo. Em seguida, a SPE aliena fiduciariamente o imóvel a um agente custodiante, que detém a propriedade resolúvel do bem em benefício dos futuros detentores de tokens. A SPE então emite os tokens, que representam frações dos direitos econômicos sobre a própria sociedade, que por sua vez controla o imóvel gravado com a alienação fiduciária. Busca-se, ainda, averbar na matrícula do imóvel a existência desse contrato e, idealmente, uma anotação sobre a emissão de tokens.
Essa estrutura cria uma camada de abstração significativa. O investidor não se torna diretamente proprietário de uma fração do imóvel, mas titular de um token que representa um direito sobre uma SPE cujos ativos estão em garantia para os próprios detentores de tokens. A gestão dos direitos coletivos desses investidores sobre a SPE e o imóvel assemelha-se a um condomínio, porém com cotas negociáveis ao portador e registro em rede descentralizada.
Quem tem competência para regular os ativos virtuais?
A Lei nº 14.478/ 2022 estabeleceu as primeiras diretrizes para a prestação de serviços de ativos virtuais no Brasil. A lei define “ativo virtual” de forma ampla e o artigo 3º, inciso IV, exclui expressamente do conceito de ativo virtual as “representações de ativos cuja emissão, escrituração, negociação ou liquidação esteja prevista em lei ou regulamento”. Esta exclusão tornou-se o principal argumento jurídico utilizado pelos registradores de imóveis para contestar a legalidade de um sistema de tokenização de propriedade à margem do sistema registral.
A lógica é clara: a constituição, transferência e publicidade dos direitos reais imobiliários são exaustivamente previstas no Código Civil e na Lei de Registros Públicos. Portanto, a tokenização do direito de propriedade imobiliária se enquadraria nesta exceção, não podendo ser regulada por analogia a outros criptoativos e permanecendo sob a jurisdição do sistema de registros públicos.
O Decreto nº 11.563/2023 designou o Banco Central (BC) como órgão competente para regular, autorizar e supervisionar as prestadoras de serviços de ativos virtuais. A competência do BC concentra-se no agente que opera no mercado (plataformas de negociação, custodiantes), estabelecendo regras para o funcionamento dessas empresas, incluindo requisitos de capital, governança e prevenção à lavagem de dinheiro. A validade jurídica do token negociado, contudo, depende de outras esferas: o Código Civil e a Lei de Registros Públicos para imóveis, e a regulação da CVM para valores mobiliários.
A competência da CVM para regular o mercado de capitais prevalece sobre o Marco Legal dos Criptoativos. Qualquer token que se enquadre na definição legal de valor mobiliário está sob sua jurisdição. Muitos tokens imobiliários, especialmente aqueles representando frações de fluxos de aluguéis ou participação em lucros de incorporações, preenchem os requisitos de “contrato de investimento coletivo” e são, na prática, valores mobiliários sujeitos à regulação da CVM.
No final de 2024, o Banco Central lançou a Consulta Pública nº 109, com propostas de normas para prestadoras de serviços de ativos virtuais. A minuta definiu “tokenização de ativos” de forma ampla, mas o movimento mais significativo foi a exclusão explícita de certos ativos de seu escopo. A norma proposta indicou que não se aplicaria aos instrumentos financeiros e aos bens, móveis ou imóveis, que sejam objeto de processos de tokenização.
Pode-se argumentar que essa exclusão deliberada sugere que o próprio regulador federal designado pela lei reconhece que a regulação da propriedade imobiliária tokenizada extrapola sua competência e pertence a outra esfera institucional: o direito registral e imobiliário, sob supervisão do CNJ.
Protagonistas institucionais do debate
O Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (Irib), fundado em 1974, é a principal entidade de representação dos Oficiais de Registro de Imóveis do país. Sua missão histórica é o aperfeiçoamento jurídico e a defesa da segurança do sistema registral, atuando coordenadamente com outros grandes atores do setor como membro do Fórum Nacional de Desenvolvimento Imobiliário (FNDI).
O Conselho Federal de Corretores de Imóveis (Cofeci) é a autarquia federal responsável por normatizar e fiscalizar a profissão de corretor de imóveis, atuando com os conselhos regionais (Crecis). Com competência para baixar resoluções sobre ética e disciplina profissional, o Cofeci viu na tokenização uma oportunidade de expandir sua relevância no mercado digital.
O Fórum Nacional de Desenvolvimento Imobiliário (FNDI) é uma articulação permanente que reúne as mais importantes entidades do setor imobiliário brasileiro, incluindo incorporadoras (Abrainc), crédito imobiliário (Abecip), construção civil (CBIC) e o sistema registral em suas diversas representações. Seu objetivo é construir consensos para aprimorar o ambiente de negócios do setor.
O Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (ONR) é uma entidade de direito privado sem fins lucrativos, criada pela Lei 13.465/2017, com a missão de implementar e operar o Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (SREI) em todo território nacional, sob regulação e fiscalização da Corregedoria Nacional de Justiça. O ONR representa a modernização oficial e centralizada do sistema registral brasileiro, conectando mais de 3.600 cartórios em plataforma única.
Cronologia da controvérsia
A controvérsia teve seu marco inaugural em 10 de abril de 2025, quando o Irib emitiu o parecer “Tokenização e Controle dos Direitos Reais Imobiliários” (OF-IRIB/P/JPBJ-06/2025). Este documento funcionou como alerta preventivo, questionando a conveniência de criar um “segundo sistema em blockchain” para transacionar direitos reais, operando paralelamente ao registro de imóveis. O parecer analisou as supostas vantagens da tokenização e as contrapôs aos riscos iminentes, argumentando que a agilidade prometida viria ao custo da eliminação da qualificação jurídica, filtro essencial que impede o registro de atos inválidos e previne litígios.
A ausência desse filtro poderia levar a anulações em massa de transações, inconsistências de informação entre o registro oficial e a blockchain, e ambiente propício à evasão fiscal e lavagem de dinheiro. O documento traçou paralelo com os problemas do sistema Mers nos Estados Unidos, que contribuíram para a crise hipotecária de 2008 ao criar opacidade sobre a titularidade de créditos.
O ato catalisador do conflito ocorreu em 14/8/2025, com a publicação da Resolução Cofeci nº 1.551, a qual não se limitou a orientar corretores de imóveis, mas instituiu um ecossistema regulado completo para “Transações Imobiliárias Digitais”. Criou as figuras das Plataformas Imobiliárias para Transações Digitais (PITDs) e dos Agentes de Custódia e Garantia Imobiliária (ACGIs), determinando que ambos deveriam ser credenciados e supervisionados pelo próprio Cofeci. Ainda, definiu o Token Imobiliário Digital (TID) como representação de “Direitos Imobiliários Tokenizados” (DITs), que poderiam ser de natureza tanto obrigacional quanto real. Crucialmente, estabeleceu que a intermediação de negócios envolvendo TIDs seria atividade privativa de corretores de imóveis inscritos no sistema Cofeci-Creci.
A reação foi imediata. Cinco dias após a publicação, o Irib divulgou a Nota Técnica CPRI/IRIB nº 01/2025, desconstruindo a resolução em múltiplas frentes jurídicas. Argumentou incompetência formal do COFECI, que como conselho profissional não possui poder de agência reguladora para criar um mercado e alegou a inconstitucionalidade por legislar sobre Direito Civil e Registros Públicos, matérias de competência privativa da União. Por fim, apontou ilegalidade material, contrariando diretamente o Código Civil, a Lei de Registros Públicos e a própria Lei de Ativos Virtuais.
Paralelamente, em 18 de agosto, a Corregedoria-Geral da Justiça de Santa Catarina emitiu a Circular nº 410, proibindo expressamente que oficiais de registro realizassem “qualquer anotação, averbação ou registro que vincule a matrícula imobiliária a tokens digitais, representações em blockchain ou qualquer outro instrumento extrarregistral”. A decisão fundamentou-se nos riscos à segurança jurídica e na ausência de legislação federal autorizativa. Essa ação preventiva cortou o “cordão umbilical” que as plataformas de tokenização precisariam para conferir aparência de legitimidade aos seus produtos.
Em meio à crise, o Poder Legislativo moveu-se para propor solução estrutural. Em 4 de setembro foi apresentado o Projeto de Lei do Senado 4.438/2025, buscando criar marco legal definitivo. Suas propostas centrais incluem definir competências regulatórias (BC para prestadores de serviço, CVM para tokens de segurança, CNJ/SNRI para aspectos registrais), integrar a tecnologia ao sistema existente através de “matrícula tokenizada” operada pelo ONR, e alterar o Código Civil para reconhecer a “fração digital de propriedade de bem imóvel” como novo tipo de direito real.
Ainda em setembro, o FNDI publicou nota técnica reforçando a tese de incompetência regulatória do Cofeci e alertando para riscos sistêmicos. Argumentou que a criação de sistema paralelo de titularidade fragilizaria as garantias que sustentam o crédito imobiliário, aumentando o risco das operações e o custo do financiamento, com impacto direto no direito à moradia. Essa manifestação foi politicamente devastadora, demonstrando que a oposição não era setorial, mas generalizada em todo o mercado imobiliário.
Finalmente, em 13/10/2025, a 21ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Distrito Federal deferiu tutela de urgência na ação movida pelo ONR, determinando a imediata suspensão de todos os efeitos da Resolução Cofeci 1.551/2025. A decisão liminar reconheceu que o Cofeci extrapolou sua competência de conselho profissional, usurpou competência privativa da União para legislar sobre Direito Civil e Registros Públicos, e invadiu a esfera de atuação de outros órgãos federais como o Banco Central e o CNJ/ONR.
Síntese comparativa dos argumentos
A tabela a seguir sintetiza os argumentos das partes envolvidas no debate sobre a tokenização imobiliária.
Argumentos favoráveis | Argumentos desfavoráveis |
Democratização do acesso: permite que pequenos investidores participem do mercado imobiliário através de frações de ativos de alto valor | Risco à segurança jurídica: sistema de registro paralelo sem fé pública gera incerteza sobre titularidade dos direitos |
Aumento da liquidez: transforma ativo tradicionalmente ilíquido em ativo digital facilmente negociável | Anulações em massa: ausência de qualificação jurídica prévia pode permitir circulação de títulos viciados, levando a anulações judiciais em cadeia |
Agilidade e redução de custos: transações mais rápidas com menos intermediários e burocracia | Inconsistência de informações: coexistência de dois repositórios (matrícula e blockchain) pode gerar dados conflitantes |
Transparência e rastreabilidade: blockchain permite registro imutável e auditável de todas as transações | Evasão fiscal e lavagem de dinheiro: Negociação fora do controle dos registros públicos facilita sonegação e ocultação de patrimônio |
Inovação em produtos financeiros: Possibilita novos produtos de investimento e estruturas de garantia mais flexíveis | Risco sistêmico ao crédito imobiliário: Fragilização da matrícula como fonte única de informação compromete garantias e pode encarecer crédito |
Reflexões finais: entre a disrupção e a integração
Há uma tensão estrutural profunda entre a natureza descentralizada da inovação tecnológica e a necessidade de segurança jurídica centralizada que caracteriza o mercado imobiliário. Uma ação unilateral disruptiva gerou reações em cadeia de instituições (Irib), mercado organizado (FNDI), judiciário local (CGJ-SC) e judiciário federal, alegando a necessidade de uma correção de rota para uma abordagem mais cautelosa e sistêmica.
Esse embate pode ser visto não como luta do velho contra o novo, mas como disputa entre dois modelos concorrentes de modernização: um descentralizado e autorregulado (proposto pelo Cofeci) e outro centralizado com regulação estatal (personificado pelo ONR
O caminho para conciliação dos interesses entre tokenizadores e registradores não reside na substituição de um sistema pelo outro, mas em sua integração inteligente. O PLS 4.438/2025 aponta nessa direção ao propor uso da blockchain não como substituto, mas como extensão do registro público, através da “matrícula tokenizada”. Nesse modelo, o token herda a segurança jurídica e a fé pública do registro, enquanto o registro ganha agilidade, liquidez e programabilidade da tecnologia. O registrador manteria função essencial de qualificação jurídica na “porta de entrada” do ativo no sistema digital, garantindo a legalidade da tokenização, enquanto transações subsequentes dos tokens poderiam ocorrer de forma mais fluida e automatizada.
Os próximos passos lógicos envolvem tramitação de lei federal que estabeleça bases legais para propriedade digital, seguida por regulamentação infralegal coordenada entre CNJ (aspectos registrais e operação do ONR), CVM (tokens que são valores mobiliários) e BCB (prestadores de serviço). ). A questão não é se a tokenização imobiliária ocorrerá no Brasil, mas como será estruturada para conciliar inovação com segurança.
Fonte: Conjur