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Alexandre Gonçalves Kassama

Fraudes no INSS revelam o desprezo pelos cartórios, que, embora caricaturados, poderiam ser aliados cruciais na prevenção de crimes.

O recente episódio bilionário de fraude contra idosos que sequer sabiam dos valores a menos que vinham recebendo em suas minguadas aposentadorias tem sido tratado, de certa forma, como mais um escândalo de corrupção, matizado politicamente de acordo com o interlocutor, e jogada a responsabilidade às costas de agentes individuais, como se a eliminação de um ou de outro possível culpado fosse a questão central a ser analisada: uma vez preso e condenado o responsável, a fraude estaria para sempre resolvida e futuramente evitada.

Se, por um lado, a organização fraudulenta que, segundo notícias, atingia agentes das mais diversas “patentes” na estrutura governamental, deixa dúvidas quanto às possibilidades de defesa do cidadão individual quando toda a infraestrutura pública parece contaminada, por outro, é de se recordar que uma estrutura estatal eficiente em termos de governança é aquela que adota freios, vacinas, remédios e contrapesos que visam evitar especificamente a atuação do agente mal intencionado, e precisamente quando mal intencionado, independentemente do partido ou espectro político.

Talvez essa seja a questão principal que, tragicamente, embora não inesperadamente, vem sendo pouco debatida: quais seriam as melhorias das políticas de segurança de dados e jurídica que poderiam ser implementadas de modo a evitar que novos fatos como estes voltassem a ocorrer independentemente de quem fosse a autoridade governamental em exercício? 

Feita a questão que realmente importa, a assinatura notarial – seja ela física ou digital – surge como um instrumento óbvio de política de governança que ajudaria a evitar uma fraude nas proporções em que ocorrida, na medida em que os cartórios teriam de averiguar individualmente, e sob sua própria responsabilidade, cada assinatura de um possível beneficiário. Contudo, precisamente esse auxílio óbvio dos cartórios tem sido convenientemente esquecido no debate público, afinal, no país do jeitinho, quem gosta de cartórios? 

Basta, para exemplificar esse sentimento de ojeriza, os vídeos que, de quando em quando, circulam pelas redes sociais com script anedótico em que protoatores fazem pilhérias exacerbando as características mais “odiadas” dos trabalhadores dos tais “cartórios”. 

Como toda piada gasta, que, de tão gasta, se faz sempre renovada, invariavelmente ressurgem as mesmas e conhecidas situações-comédia, sempre novamente aclamadas pelo público que se reconhece na dificuldade do pobre usuário que tem de se submeter a exigências impiedosas de intransigentes funcionários, tais como a negativa de uso de documentos pouco ou “quase nada” inaptos – “não deixou eu usar o RG porque a foto era de dez anos” -, a exigência de certidões para provar situações supostamente óbvias – “se já tem a certidão de óbito, provando que morreu, por que precisa da certidão de nascimento, pra provar que nasceu?” -, o sentimento, ao final, de que o resultado e toda a situação passada foi, em síntese, um absurdo, típico do que histórica e preconceituosamente se atribui à herança portuguesa – “cartório, onde eu vou pagar pra provar que eu sou eu mesmo”; “um carimbo, uma assinatura e um papel comum que valem trinta reais”. Justamente os trinta reais e a prova de identidade sobre a própria assinatura que talvez tivessem evitado uma fraude de bilhões.

Sem adentrar às explicações técnicas por trás de cada uma das situações – que vistas como burocráticas pela população têm, cada uma delas, ao menos uma história de segurança e fraude concreta para ser contada em cada balcão de cada cartório de cada cidade, por menor que seja, em cada rincão do território nacional -, o deboche revela, como sói ocorrer, verdades muito mais valiosas sobre aqueles que debocham, do que sobre os que são debochados. Como na arguta e imortal observação do “18 de Brumário” marxista, terminada a tragédia, se inicia a farsa.

E a tragédia não é outra senão o fato de que, ano a ano, o Brasil se mantém entre os países campeões de fraudes no mundo. Em 2022, fomos o segundo país em números de ataques digitais e tamanho do prejuízo na América Latina1, atrás apenas do México, posição que repetimos orgulhosos em 20242, ano em que a média do prejuízo por cada ataque bem-sucedido montou 6,75 milhões de reais. Em 2023 fomos eleitos o segundo país mais vulnerável a ataques digitais no ranking mundial, atrás apenas da China3, inclusive exportando novos tipos de crime, o que permite nos dizer, orgulhosos, que a criatividade brasileira no campo das fraudes, diferentemente, do que vem ocorrendo no campo de futebol, continua em alta, fazendo do país um verdadeiro “celeiro de craques”. Em outras palavras, a fraude no INSS não é um episódio recente, isolado e único em nossa história, mas sim mais um capítulo no longo e derramado romance da sociedade brasileira com as fraudes, especialmente digitais, que se desenvolve há anos e sem qualquer atitude efetiva para sua contenção.

“Grandoreiro”, um programa malicioso brasileiro criado em 2016, infectou sistemas de instituições bancárias em mais de 40 países, causando prejuízos de milhões de euros, e é atualmente elencada como a 6ª maior fonte de ataques cibernéticos no mundo, com novas versões ainda em desenvolvimento4. Criatividade que falta na Seleção, aqui ainda se encontra de sobra.

É claro que o criminoso digital não difere em ação típica daquele mais antigo, analógico, que tão frequentemente vem barrado nos próprios cartórios, estando ambos os delitos analógico ou digital englobados no famoso artigo, patrimônio da cultura popular, o “171” do CP. 

Se um dia aprovada for a reforma do CP – que possui, tal qual o CC, projeto parado no Senado – é mister que se mantenha o estelionato em seu lugar. Jamais se aceitará, por exemplo, “171 – apropriação indébita”. Outros artigos, talvez, possam mudar – exceção feita, aos imortalizados pela cultura periférica: “vou ter que assinar, um 121”; “hoje eu sou ladrão, artigo 157” -, mantenha-se o 171 onde está: mais uma prova de nosso patrimônio cultural brasileiro.

Segundo dados do Anuário da Segurança Pública, os crimes de estelionato, em contraste com os crimes violentos, que vêm reduzindo, mais do que quadruplicaram nos últimos anos, atingindo, em 2023, a média de 208 casos por hora6. Há mais estelionatos do que roubos no país, pelo menos desde 20215. A explosão da modalidade digital revela a tragédia que as comédias citadas no início do texto tentam disfarçar: não fossem os cartórios, o número de fraudes seria muito maior. Em outra perspectiva: a ausência de “cartórios” mais entranhados na vida digital faz com que o mundo cibernético seja solo fértil para todo tipo de fraude, e exatamente as fraudes do INSS ocorreram apesar de assinaturas digitais e com biometria, que supostamente seriam mais seguras que as assinaturas dos cartórios – embora não se tenha observado, nunca, em relação a estes últimos, nada numa escala tão grande quanto a que ora se descortina no noticiário.

Talvez países como a Suécia, a Dinamarca, a Noruega, com uma população que somada mal chega ao tamanho daquela que habita a região metropolitana de São Paulo, e com uma renda per capta mínima superior a 50 mil dólares anuais – algo como 250 mil reais por habitante – possam mesmo prescindir de cartórios, já que estão longe da criatividade brasileira, não sendo grandes exportadores de fraudes. A grande comédia – ou farsa – é querer tratar o Brasil como país nórdico, especialmente nesse âmbito. Em certo sentido, talvez essa seja a maior fraude de toda a nossa história de pseudocombate às fraudes: quem precisa de cartórios num país tão correto como o Brasil? 

Como no Sermão da Sexagésima do Pe. Vieira, em que após frisar o que “Jesus disse”, o orador sublinha ainda mais o que ele “não disse”, sendo esta parte inclusive mais importante do que aquela, pode-se dizer que os cartórios no Brasil cumprem sua função tanto quando negam a prática de um ato – e talvez até mais – do que quando o praticam. E há pelo menos uma tese de doutorado apontando para essa função: segurança jurídica se preserva, muito mais pelo que se nega, do que pelo que se afirma (v. ALISSON CLEBER FRANCISCO – “As serventias extrajudiciais como ferramenta de promoção de inclusão jurídica: uma análise mais ampla de sua função e impactos na sociedade”).

Na complexa e multifacetada tarefa de se interpretar o perfil de uma sociedade, ao menos uma, e talvez a mais famosa, embora não isenta, obviamente, das devidas críticas, apontou o ethos brasileiro como o “país do jeitinho”. Talvez, nesse sentido, o ódio da população contra os cartórios derive justamente do anacronismo de não conseguirem, segundo as próprias esquetes em que representam seu sentimento comum, “dar um jeitinho” no cartório.

Não é assim, de se estranhar, que projetos que visam retirar atribuições dos cartórios, normalmente para lhes entregar, de mão beijada, a empresas privadas, sejam sempre aplaudidos, no Legislativo e fora dele, sob a pecha de “desburocratização”. 

Pouco importa todos os dados de fraude já aqui expostos: se é necessário melhorar o “ambiente de negócios do país”, e não se tem uma ideia acertada para o tema, melhor, como o capitão Renault de Casablanca ao ver os fugitivos passarem por baixo de sua vigia, “prender os suspeitos de sempre”. Se os cartórios são odiados pela população, talvez seja melhor mesmo deixar a população fazer a seu gosto. Em um evidente caso de dissociação cognitiva, quanto mais as fraudes explodem, menos as pessoas se recordam que os cartórios existem para evitá-las, e, não por acaso, os maiores escândalos ocorreram em situações sem a intervenção notarial, que muito possivelmente os teria evitado, ou ao menos mitigado a números muito mais reduzidos.

Enfim, como no “Conto Alexandrino” de Machado, tempo virá, talvez, em que a sociedade toda vai patuscar com projetos que finalmente acabem com os cartórios. Nesse tempo, então, como os cachorros apontando a óbvia e não observada situação aqui tratada de que “depois do fim deles, será o nosso”, a resposta, até o momento, parece ser a dos ratos: “mas enquanto isso, riamos!”

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1 https://exame.com/future-of-money/r-103-bilhoes-roubados-brasil-e-o-2o-pais-que-mais-sofre-crimes-ciberneticos-na-america-latina/. Acesso em 27.03.2025.

2 https://www.cnnbrasil.com.br/economia/negocios/brasil-e-vice-campeao-em-ataques-ciberneticos-com-1-379-golpes-por-minuto-aponta-estudo/#goog_rewarded. Acesso em 27.03.2025.

3 https://securityleaders.com.br/brasil-e-2-lugar-em-fraudes-no-mundo-e-ja-exporta-crimes/#:~:text=Compartilhar%3A,mundial%2C%20apenas%20atr%C3%A1s%20da%20China. Acesso em 27.03.2025

4 https://www.cisoadvisor.com.br/duas-novas-versoes-do-trojan-grandoreiro/. Acesso em 27.03.2025.

5 https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/07/20/estelionatos-no-brasil-mais-que-triplicam-em-cinco-anos-e-golpes-virtuais-disparam-apos-pandemia-revela-anuario.ghtml. Acesso em 27.03.2025.

6 https://www.cartacapital.com.br/sociedade/numero-de-estelionatos-aumenta-e-brasileiros-sofrem-1-golpe-a-cada-16-segundos/. Acesso em 27.03.2025.

Epa! Vimos que você copiou o texto. Sem problemas, desde que cite o link: https://www.migalhas.com.br/depeso/430284/fraude-no-inss-e-o-conveniente-esquecimento-dos-cartorios

Fonte: Migalhas

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