skip to Main Content

MP dos cartórios digitais fragiliza a fé pública registral e amplia a insegurança jurídica

O avanço das novas tecnologias no cotidiano da população e na economia traz profundas transformações em nosso modo de vida se compararmos com 30 anos atrás. Se por um lado oportunidades de negócios, simplificações e desburocratizações podem ampliar a liberdade do indivíduo, na outra mão, quando a digitalização toca regimes jurídicos regulados pelo Estado, nem sempre a pressa é amiga do bom direito e do resultado final almejado.

Um bom exemplo deste cenário é a medida provisória 1.085/2021, que regulamenta o chamado Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (Serp). Logo no início de seu texto, a MP apresenta sedutores objetivos, como a simplificação e a modernização dos procedimentos relativos aos registros públicos de atos e negócios jurídicos e de incorporações imobiliárias. Ao mesmo tempo, guarda em concreto sérios riscos de violação a direitos e garantias dos indivíduos, além de uma apressada reestruturação, sem estudos de impacto, de um complexo regime que influencia e fundamenta diversos processos e atos jurídicos do Estado e da população.

O primeiro ponto que salta aos olhos é o descompasso da referida norma com a tradição contemporânea de proteção de dados pessoais. A MP cria entidade registradora centralizada em um único ponto focal, constituída sob a forma de pessoa jurídica de direito privado (art. 3º, §4º) que é estranha ao regime constitucional das serventias de exercício de delegação “intuitu personae” (nos termos do art. 236 da Constituição).

Da perspectiva da proteção de dados, o fomento à concentração dos dados em um único ente, como na nova entidade registradora privada e centralizada, fere frontalmente o direito fundamental à autodeterminação informativa. Como assinalado tanto por casos recentes no Supremo Tribunal Federal quanto à ocasião do célebre julgamento do Tribunal Constitucional Alemão de 1983, a construção de data lakes —vastos bancos de dados constituídos por uma infinidade de dados de diferentes naturezas e matrizes— gera tanto o perigo antidemocrático da formação de perfis de indivíduos quanto um risco elevado de vazamento da infinidade de dados centralizados.
As chances de a MP 1.085/2021 terminar no STF —caso seja convertida em lei— são dadas quase como certas, visto seus contornos incompatíveis com o direito à proteção de dados, semelhante aos presentes no decreto 10.046/2019 (que cria o Cadastro Base do Cidadão), cuja inconstitucionalidade ainda está pendente de julgamento, e no famoso “Caso IBGE”, já julgado em 2020.

Não somente os pilares do regime moderno de proteção de dados são tocados pela referida MP. Ela introduz também mudanças que não se adequam ao regime constitucionalmente definido para o exercício da atividade notarial e registral. Há dispositivos que impactam diretamente o regime de delegação da atividade dos serventuários, a exemplo da possibilidade de serem viabilizados, diretamente pelo Serp, a expedição centralizada de certidões, a visualização eletrônica dos atos transcritos e o armazenamento de documentos eletrônicos para dar suporte aos atos registrais (art. 3º, incisos V, VI e VIII).

Ademais, com o propósito de simplificar os atos, a MP caminha para a fragilização da fé pública registral e o incremento da insegurança jurídica em atos extremamente sensíveis para a estabilização e o reconhecimento de direitos, tal como a flexibilização das assinaturas eletrônicas —que, conforme seus artigos 11 e 38, poderão ser realizadas com o uso de assinatura avançada, modalidade que não observa o padrão ICP-Brasil atualmente em vigor— e a realização de registros, por uma das partes interessadas, a partir de extratos eletrônicos e não do título em si mesmo (art. 6º). Em ambas as circunstâncias, há impactos não apenas sobre a segurança da operação, como também sobre o regime de responsabilidade das serventias, pois o serventuário não disporá de garantia suficientes para atestar a veracidade e autenticidade do título.

E, por fim, a ideia embutida de um profundo descompasso entre a realidade das serventias e a digitalização moderna deve ser analisada com cuidado. Plataformas como e-Notariado (dos notários) e Cenprot (de protestos), entre outras, já sinalizam para uma direção de aprimoramento digital dos serviços notariais. Acima de tudo, a empreitada centralizadora de dados do Serp não necessariamente leva à modernização. O fomento de objetivos como o da simplificação e modernização dos procedimentos relativos aos registros públicos de atos e negócios jurídicos e de incorporações imobiliárias presentes na MP deveria se orientar mais por sistemas interoperáveis e descentralizados, garantindo assim, ao mesmo tempo, um alto nível de proteção aos dados dos indivíduos e também agilidade e confiabilidade da prestação de serviços.

A discussão sobre modernização e digitalização de setores regulados pelo Estado deve ocorrer com ampla discussão e participação tanto dos “stakeholders” quanto da sociedade civil. Mas a modernização e a digitalização não podem ocorrer às cegas e às custas de direitos e garantias fundamentais do indivíduo, como no caso da medida provisória nº 1.085/2021.

Ricardo Campos: Docente na Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha), é sócio de Opice Blum, Bruno e Vainzof Advogados

Fonte: Folha de S. Paulo

Back To Top