Por Andrey Guimarães Duarte
A confiança é um dos elementos que unem os indivíduos em sociedade. Em especial as relações comerciais, que exigem a confiança de que as partes vão cumprir o avençado. Hoje, essa confiança decorre principalmente do maior ou menor acesso à informação e da capacidade de compreendê-la. Quanto mais difícil obter informações e menor seu entendimento, maior o lapso de confiança entre os indivíduos.
Nas palavras de Katherine Maher, CEO da Wikimedia Foundation, “o mundo vive uma crise de confiança. E essa crise não é apenas de proporções sem precedentes, é também uma ameaça existencial para a humanidade, pois ela é transversal a vários mundos, e que afeta desde o jornalismo até os órgãos de governo”.
Assim, podemos afirmar que entre os indivíduos sempre houve certo grau de dissonância da noção de realidade. Hoje essa dissonância está cada vez maior. Quando buscamos informações relevantes para a tomada de decisões, captamos o mundo através de uma lente digital que pode mudar nossa percepção dos fatos.
O digital os reflexos sobre a confiança
Os algoritmos, em razão da dataficação de nosso comportamento, nos termos do conceito cunhado por Viktor Mayer-Schönberger e Kenneth Cukier, nos conhecem melhor do que nós mesmos. Câmeras reconhecem nossa face, celulares seguem nossa localização, relógios captam nossos dados de saúde, redes sociais registram nosso histórico, e todos esses dados são cruzados e interpretados para, ao final, escolherem a que informações seremos submetidos.
Formam-se, então, universos individuais. Uma espécie de realidade retroalimentada, na medida em que normalmente esses algoritmos não são escritos para desafiar o observador, mas sim para agradá-lo, de sorte que cada busca por informação é personalizada e planificada.
Neste passo, constata-se que hoje há um processo de crescente desconfiança em relação ao mundo digital, gerado também por uma causa estrutural pouco estudada. Falo do analfabetismo digital. Não aquele causado pelo não acesso ao mundo digital, mas sim o que decorre da transformação que o mundo digital causou na representação do pensamento humano. Explico: o atual ambiente de desconfiança generalizada atinge o próprio suporte das informações que recebemos. É que as pessoas têm percebido que aquilo que veem nas telas necessariamente não é o que efetivamente ficará registrado.
O pensamento humano necessita de códigos para ser externado e compreendido pelos destinatários. E mais: em situações complexas, de efeitos duradouros, precisa de suporte material que o perpetue.
O raciocínio se externa de códigos organizados em regra com o objetivo de permitir que o interlocutor entenda a ideia, a fala. Já no que toca à preservação da informação, o ser humano, há milhares de anos, desenvolveu outra série de códigos, a escrita.
Neste milênio, um novo código de linguagem passou a ser predominante na transmissão das informações ao transformar a linguagem escrita em código mediato de transmissão, não gerando grau de confiança que outrora gerava nas interações humanas. A linguagem de programação passou a servir de suporte intermediário para a escrita a causar, por vezes inconscientemente, um sentimento de estranheza naqueles que interagem por meio desse novo suporte, mantido por códigos/linguagens que não entendem. Tanto que alguns países já introduziram o ensino obrigatório da programação desde o ensino fundamental, como é o caso de Coreia do Sul, Inglaterra e Austrália. Agora somos analfabetos em uma nova linguagem.
O papel do Estado na recuperação da confiança
Essas duas causas da crise de confiança da sociedade moderna exigem trazer ao debate um ator que se manteve até o momento distante dessas questões: o Estado, única realidade imaginada que ainda possui mecanismos de legitimação democrática e jurídica para pacificar a sociedade e evitar o rompimento do tecido social gerado pela desconfiança generalizada.
Há a necessidade de que o Estado participe, juntamente com a sociedade civil e as empresas, desse debate na construção de uma regulação equilibrada da atuação desses algoritmos, na medida em que vemos que a autorregulação das empresas não tem se mostrado suficiente. Há necessidade também que o Estado lidere as ações de alfabetização digital das pessoas, para que paulatinamente possam se tornar autossuficientes nesse novo suporte do pensamento. Essas soluções demandam um tempo de que não dispomos.
Portanto, até que possamos devolver aos indivíduos a capacidade de interpretar as informações, devemos imediatamente encontrar mecanismos de atenuação da desconfiança. Primeiro, constata-se que já enfrentamos crise de confiança nas informações, no início da massificação das relações comerciais.
Os notários e sua credibilidade na dataficação da sociedade
As praças de comércio eram locais de enorme insegurança e conflito causado pelo fato de que os atores desconheciam os códigos da linguagem escrita. Imperava a oralidade e a memória humana como forma de perpetuação dos negócios firmados.
Na impossibilidade de alfabetizar os indivíduos, surgiram nas praças de comércios pessoas que, dotadas de conhecimento nas artes da escrita e credibilidade entre os cidadãos, que ficaram incumbidas de presenciar e registrar as relações negociais. Esse mecanismo não apenas conferiu a possibilidade de facilitação na solução de litígios, como também serviu de desestímulo a questionamentos infundados. O atuar nessas áreas fez com que esses atores se tornassem peritos nas regras que regulavam as relações humanas, ou seja, passassem a conselheiros jurídicos.
Essa atividade, que recebeu o nome de função notarial, consiste justamente na direção imparcial da vontade dos particulares, formalizando-as de acordo com a lei para que atinjam sua finalidade e possam servir de prova eventual.
O desenvolvimento milenar dessa atividade, fez com que a função notarial conquistasse grau elevado de credibilidade e presença na cultura dos povos. Assim como criou um arcabouço jurídico legal que faz com que a função notarial seja revestida de atributos que conferem maior confiança às relações negociais e aos fatos que presenciam.
A atestação dos suportes digitais, pelos notários, pode reduzir as dúvidas decorrentes do desconhecimento da linguagem de programação e da veracidade das informações. Vejamos o caso de informações inseridas em uma rede blockchain. Em decorrência da criptografia e do consenso de rede, elas serão imutáveis. Contudo uma informação inverídica será imutavelmente inverídica. Assim, caso haja desconfiança em relação à veracidade da informação matriz, o notário pode, com a fé pública gerada por sua credibilidade e regime jurídico, atestar sua veracidade, suprindo o lapso de confiança entre as partes.
A sociedade terá que encontrar mecanismos de atenuação da desconfiança como o acima sugerido, pois tecnologias que permitem a dataficação da vida e a inteligência artificial impactam de forma inédita nossa forma de pensar, de decidir, de trabalhar e de educar, com reflexos enormes em princípios e valores que são caros ao humanismo, tais como liberdade, igualdade e privacidade. Nesse contexto, a humanidade depende de suas escolhas políticas e pode se valer de instituições do passado para que as mudanças sejam benéficas ao maior número de seres humanos.
Andrey Guimarães Duarte é tabelião e vice-presidente do Colégio Notarial do Brasil — Seção São Paulo.
Fonte: ConJur