Dados inéditos mostram que 780 brasileiros documentaram suas últimas vontades em relação a tratamentos e cuidados médicos no fim da vida
BRASÍLIA – Dez dias em cima de uma moto, viajando de Brasília para as serras catarinenses, foi a maneira que Gervásio Borges escolheu para digerir a notícia mais impactante de sua vida: a morte está próxima. O homem de 63 anos, sorriso fácil e fala tranquila recebeu no ano passado o diagnóstico de Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), após peregrinar por 12 consultórios tentando descobrir a causa de câimbras, perda de peso e fraqueza. Assustou-se com a velocidade impiedosa da doença degenerativa que causa paralisia motora, até para respirar ou engolir, restando apenas os movimentos dos olhos na fase mais avançada.
Ao receber o diagnóstico, o então servidor público se aposentou. E, após se despedir das viagens sobre duas rodas, uma de suas paixões, Gervásio, mais conhecido como Vavá, decidiu que não passaria no tempo que lhe resta — não mais que três anos, pelo prognóstico médico — por sofrimentos desnecessários. Ele fará uso das Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV), chamadas de “testamento vital”, instrumento usado para documentar de forma expressa o que se quer ou não em termos de cuidados médicos diante de doença grave, irreversível e sem possibilidade de cura.
— Não quero chegar à parte final da doença, quando a pessoa só mexe os olhos. Já vivi muito. Só quero ser sedado e ir embora, sem prolongar a agonia. Está tudo registrado no documento: não quero ventilação mecânica, alimentação por sonda, nada artificial — conta Vavá, que anda sempre com a papelada a tiracolo.
O registro de DAVs bateu recorde no Brasil em 2021. Dados inéditos obtidos pelo GLOBO mostram que 780 brasileiros se dirigiram a cartórios de notas para deixar documentadas suas últimas vontades em relação a tratamentos e cuidados médicos no fim da vida — 41% a mais que no ano anterior e o maior registro desde 2007, quando começa a série histórica levantada pelo Colégio Notarial do Brasil. Naquele ano, foram 79 casos.
Comum em países da Europa, o documento aos poucos se torna mais conhecido no Brasil, dentro da concepção da morte digna e da autonomia do paciente. Em 2012, o Conselho Federal de Medicina (CFM) regulamentou o tema para orientar os médicos a respeitar o desejo dos doentes em estado terminal.
Professor de ética médica e diretor acadêmico da Associação Médica Brasileira, Clovis Francisco Constantino afirma que as Diretivas Antecipadas de Vontade são “extremamente importantes” hoje devido ao aumento da expectativa de vida da população.
— Os pacientes não morrem mais jovens de doenças infecciosas agudas, mas sim idosos com doenças crônicas degenerativas, Alzheimer, câncer. Chegam próximo da terminalidade física da vida e é importante que o médico e a equipe saibam o que eles pensam sobre isso — diz Constantino. — O médico não deve executar tratamentos fúteis apenas para postergar a morte. Está no Código de Ética Médica.
Constantino ressalta que até mesmo entre os médicos ainda há desconhecimento da existência das diretivas antecipadas, assim como na população em geral. Ele esclarece que o escopo do documento é bem definido. As últimas vontades do paciente só serão cumpridas caso a morte seja irreversível. Vidas saudáveis, diz o médico, têm que ser salvas. A Covid-19, por exemplo, apesar da gravidade para muitos pacientes, não se enquadraria em situação passível de recusa de tratamentos.
Edyanne Moura da Frota Cordeiro, vice-presidente do Colégio Notarial do Brasil da seção Rio de Janeiro, tabeliã com experiência em lavrar testamentos vitais, diz que a pandemia parece ter despertado as pessoas para pensar mais sobre a hora da morte.
— Todo mundo se concentra no nascimento, chama fotógrafo, escolhe a clínica, pouca gente quer falar da morte. Mas isso está mudando e a tendência se reflete no maior número de registros — afirma.
Ela diz que nem sempre as pessoas que registram suas diretivas de vontade em cartório têm doenças incuráveis:
— São pessoas que, muitas vezes, viveram dramas pessoais, viram entes queridos sofrerem ao fim da vida e se preocupam com isso.
As diretivas, a rigor, nem precisam ser registradas em cartório. A resolução do CFM fala em “conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade”. E determina que as vontades sejam registradas no prontuário, prevalecendo inclusive sobre os desejos de familiares.
Vice-corregedora do CFM, Helena Maria Carneiro Leão diz não ter conhecimento de nenhum médico processado por atender ou deixar de atender diretivas antecipadas de vontade. Ela destaca que em muitas situações, sobretudo em emergências, onde o atendimento é feito por plantonistas, o desejo do paciente pode deixar de ser conhecido ou respeitado.
— Nunca vi denúncias, mas vai acontecer de o paciente, por exemplo, ser atendido por médicos muito jovens, que, com medo de serem processados, vão reanimar. Vai levar um tempo para essa cultura chegar aos médicos e aos pacientes — diz Leão.
Segundo ela, a popularização dos cuidados paliativos ajuda na conscientização sobre o respeito aos desejos do paciente no fim da vida:
— Não deixa de ser uma diretiva o paciente dizer: não quero mais ficar na UTI, quero ir para casa com uma máscara de oxigênio. Esse momento da vida, que é a hora da morte, tem que ser de paz.
Embora não haja uma lei sobre o tema, as diretivas antecipadas de vontade são admitidas pela doutrina, afirma o jurista Flavio Tartuce, mestre e doutor em Direito Civil. Ele explica que o documento se baseia na liberdade da pessoa e em artigo do Código Civil, que diz que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”. Tartuce ressalta que a aplicação das diretivas não se confunde com o conceito de eutanásia:
— Muitas vezes acabam confundindo a eutanásia, que é a abreviação da vida por ato positivo, com ortotanásia, que é deixar de empreender a obstinação terapêutica (foco das diretivas antecipadas).
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Vavá, que sente o avanço da doença ao não conseguir mais comer sólidos, conta que se surpreendeu com o que chama de “atraso” do país em relação ao tema da morte digna.
— O médico falou que só o documento não resolveria. Que eu podia chegar num hospital e iriam querer me salvar. Não basta a família toda assinar? Esse Brasil é muito atrasado. Por orientação do médico, anexei dois relatórios — diz.
Cida Borges, casada há 38 anos com Vavá, e os três filhos apoiam a decisão do pai. O mais velho, Pedro, conta que passou dias “tentando fugir do documento”:
— Sempre queremos um milagre, um tratamento experimental, um remédio. Mas quando você conhece alguém com a doença, e sabe da evolução, entende.
Rodeado pela família, Vavá já definiu os próximos passos antes da partida:
— Comecei a arrumar minha vida, me despedir das coisas e exercer a gratidão.
Fonte: O Globo