Ministro do STF e próximo presidente do TSE analisou os 20 anos do conjunto de normas que começou a ser elaborado durante a Ditadura
Embora pareça distante da realidade social e política do país, ou um assunto que interessa exclusivamente aos advogados, o Código Civil reúne as normas que guiam a vida privada no Brasil – casamento, divórcio, propriedade – e sua última versão acaba de completar 20 anos. Especialista no assunto, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin defende a modernização do Código em temas como casamento e dados pessoais e diz entender que a inevitável defasagem provocada pela passagem do tempo “demonstra que a realidade é um processo em constante construção e que não há um fechamento definitivo dos significados de família, contrato, propriedade, personalidade”.
Em entrevista ao GLOBO, o magistrado avalia o papel do STF na aplicação das normas do direito civil, como união de pessoas do mesmo sexo, e afirma que, embora o atual arcabouço legislativo tenha começado a ser feito durante a ditadura militar, ele não vê traços do período autoritário em sua composição. Para Fachin, o avanço de pautas conservadoras na sociedade e na política brasileira nos últimos anos não é uma ameaça à uma modernização das regras.
Próximo presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Fachin diz não acreditar que as eleições deste ano estejam em risco, apesar do aumento dos ataques à credibilidade dos órgãos eleitorais em todo o mundo. “É importante lembrar que o processo democrático possui um caráter pluralista e, justamente por se construir no dissenso, nunca estará livre de antagonismos”, afirmou.
A seguir, a íntegra da entrevista com o ministro do STF:
Ministro, qual é a importância do marco de 20 anos de sanção do Código Civil?
O transcurso de 20 anos da codificação civil vigente demonstra que é no diálogo com os fatos e com o tempo presente que se compreende que a pretensão de abarcar a realidade é um processo em constante construção e não há um fechamento definitivo dos significados de família, contrato, propriedade, personalidade. É, pois, momento de pensar na relevância simbólica do Código Civil, bem como de seus limites e possibilidades no atendimento das demandas contemporâneas no âmbito das relações interprivadas.
Na sua avaliação, um conjunto de normas que começaram a ser gestadas na década de 1970 e promulgadas apenas em 2002 pode se manter atual nos dias de hoje?
O desenho normativo do Código Civil de 2002, embora originado em momento histórico distinto, o que ensejou, ao tempo de sua aprovação, criticável anacronismo frente ao desenvolvimento da doutrina e da jurisprudência à época, sempre se sujeita a uma atualização interpretativa. A leitura do Código Civil a luz da Constituição, realizada pela jurisprudência e pela literatura jurídica brasileiras desde a sua publicação, tem permitido, ainda que dentro de certos limites, superar aquilo que se mostrava desatualizado.
O senhor entende que existem resquícios do período ditatorial na atual versão do Código Civil?
Não vejo no Código Civil expressão de autoritarismo, nada obstante o momento histórico de sua elaboração. Trata-se de obra gestada, em seu anteprojeto, por Comissão de juristas notáveis, entre os maiores civilistas do século XX, que realizaram trabalho de natureza técnica, sob a coordenação do professor Miguel Reale.
Para o senhor, qual é o papel do Supremo Tribunal Federal (STF) na manutenção da modernidade do Código Civil?
Como guardião da Constituição, o STF tem o papel de assegurar a unidade do sistema jurídico, com base nas regras e princípios Constitucionais. Nesse sentido, ao se reconhecer a Constituição como uma das fontes do governo jurídico das relações interprivadas, é inevitável afirmar o influxo da normatividade constitucional sobre a interpretação do Código Civil, permitindo sua permanente atualização hermenêutica, tanto sob a perspectiva da Constituição formal, que apresenta como texto vinculante, como sob a ótica de uma constitucionalização material e, ainda, de uma constitucionalização prospectiva do Direito Civil, que recolhe as transformações sociais e, ao mesmo tempo, projeta efeitos consentâneos com o programa constitucional de uma sociedade livre, justa e solidária.
Quais são esses exemplos?
Os exemplos dessa tarefa interpretativa derivam de julgamentos que falam por si só: as ações que assentaram o reconhecimento da união estável homoafetiva como entidade familiar; a ação que reconhece a identidade de gênero como livre expressão da personalidade e a possibilidade de alteração do registro civil independentemente de realização de cirurgia de transgenitalização; a ação que determinou a suspensão das ordens de despejo durante a pandemia; o recurso que declarou a inexistência no direito brasileiro do chamado direito ao esquecimento, ainda que, em abstrato, a discussão não tenha se encerrado; o recurso que fixou tese no sentido de que a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios; o recurso que reconheceu a inconstitucionalidade da distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no artigo 1.790 do Código Civil, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável.
Quais são os temas presentes no Código Civil que precisariam ser atualizados?
É certo que as transformações Constitucionais demandam um novo olhar sobre vários temas de Direito Civil, com destaque para o Direito de Família. Seja por meio da aplicação das normas constitucionais pelo STF, seja por meio de emenda constitucional aprovada pelo Congresso Nacional, como a que instituiu o divórcio direto incondicionado, é inegável que esse ramo do Direito Civil passou por profundas transformações, o que permite constatar que o modelo de Direito de Família do Código Civil está bastante desatualizado, merecendo uma importante revisão.
Em 2011 o STF precisou declarar o Código Civil inconstitucional em razão da decisão que permitiu o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Hoje, a autorização para o registro ainda é feita por meio de uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Não cabe ao Código Civil pacificar esta questão?
O STF promoveu interpretação conforme à Constituição do artigo 1.723 do Código Civil, a fim de excluir qualquer interpretação que impeça a concessão dos mesmos efeitos da união estável heteroafetiva à união entre pessoas do mesmo sexo. Seria adequado que o Código Civil incorporasse expressamente os efeitos derivados dessas decisões da Corte, que, na verdade, nada mais são do que expressões daquilo que deriva diretamente da Constituição. O descompasso entre Constituição e o texto do Código é indesejável, embora seja necessário ressaltar que as normas constitucionais também são fontes do Direito Civil.
Em 2002, quando ocorreu a sanção do Código Civil, houve um debate sobre a unificação entre o Código Civil e o Código Comercial. Nos últimos dez anos, tivemos muitas propostas de para um novo Código Comercial, mas nenhuma andou. Perdeu-se a oportunidade de unificar os códigos, tendo em vista as críticas sobre a desatualização de ambos?
A unificação do Direito Civil e do Direito Comercial não parece ser o caminho mais desejável. Se a unidade do sistema jurídico é inequívoca, derivando da principiologia axiológica constitucional, não há dúvida de que diferentes relações sociais demandam respostas jurídicas próprias, ainda que dotadas de congruência. Não por acaso a expansão do fenômeno das legislações especiais seja uma realidade que se impõe há décadas. Um Código Civil não pode se pretender completo. A pretensão de unificar o Direito Privado no Código Civil, além de se pautar em uma pretensão de completude que é objetivamente inviável, é movimento que está na contramão da história.
Nos últimos anos vivemos uma onda de conservadorismo no país, com o avanço de pautas como o armamento da população civil e propostas legislativas que definem a entidade familiar como o núcleo formado a partir da união entre um homem e uma mulher. O Código Civil está preparado para lidar com os desafios futuros?
A Constituição de 1988, ao dispor pioneiramente sobre o conceito de família, permitiu que fosse ampliada também a comunidade de intérpretes da lei. Pluralizou o debate e ampliou as frentes de inovação legal e social. Ela tornou-se uma forma de expressão e o afeto, o elemento básico dessa relação social. A família, como garantia institucional fundamental, vem expandindo seu âmbito de proteção para uma sociedade cada dia mais complexa, mais plural e inclusiva, de modo que, sensível às mudanças dos tempos, a Constituição da República aproximou o conceito social de família de seu conceito jurídico. A Constitucionalização do direito civil promoveu assim a abertura do Código para dinâmicas sociais mais livres e abertas. Penso que é um erro imaginar que essas alterações foram feitas em um vácuo: elas são reflexos de mudanças sociais tectônicas.
Na sua mensagem de final de ano, o senhor mencionou necessidade de uma resistência “à barbárie, às ideologias cegas, e à tristeza dos caminhos tolhidos”. Como próximo presidente do TSE, o senhor vê riscos ao processo democrático?
Muito embora as crises democráticas e os ataques à credibilidade dos órgãos eleitorais tenham se reproduzido em vários pontos do globo nos últimos anos, principalmente após a invasão do Capitólio dos Estados Unidos em janeiro de 2021, é importante lembrar que o processo democrático possui um caráter pluralista e, justamente por se construir no dissenso, nunca estará livre de antagonismos. Neste contexto, os debates de ideias devem se dar com transparência e com ampla liberdade de expressão, combatendo-se firmemente esse grande mal que é a desinformação. O que se deve estimular, portanto, é o diálogo qualificado e informado, buscando-se, tanto quanto possível, harmonia entre distintas correntes ideológicas, vencendo-se, assim, ódios e irracionalidades. O cenário atual é desafiador, mas estou certo de que nossa Justiça Eleitoral, instituição que vem dando exemplos de eficiência para outros países do mundo, está estruturada e preparada para assegurar um debate legítimo entre candidatas e candidatos, enfrentando a desinformação e ampliando o já muito elevado nível de transparência e abertura do processo eleitoral, pelo que proporcionará às cidadãs e aos cidadãos brasileiros paz e segurança nas Eleições de 2022.
Fonte: O Globo