Aumento no interesse pelas negociações envolvendo bitcoins motiva padronização
Cada vez mais populares, as operações de compra e venda de imóveis através de criptomoedas em Portugal passarão a ter um conjunto claro de instruções e procedimentos de realização.
Uma das principais medidas a serem adotadas é o fornecimento de informações detalhadas sobre a origem dos recursos usados para adquirir os ativos digitais.
A iniciativa é da Ordem dos Notários (oficiais de cartório que realizam escrituras), que decidiu, diante da ausência de uma legislação nacional específica, criar uma padronização própria.
A Mind The Coin tem dois novos terminais físicos de criptoativos em Lisboa e Gaia. A empresa é uma das três entidades licenciadas este ano pelo Banco de Portugal e opera com bitcoin, litecoin e monero – Mind The Coin
Segundo a entidade, a decisão foi tomada após um aumento expressivo no interesse pelas negociações imobiliárias envolvendo bitcoins e outras moedas digitais.
Nos últimos meses, Portugal atraiu a atenção da comunidade de entusiastas das criptomoedas graças a reportagens na imprensa internacional que exaltaram suas condições fiscais atraentes: o país não cobra impostos sobre ganhos de capital com a valorização desses ativos.
“Nós devemos ser extremamente exigentes com aquilo que é o combate à lavagem de dinheiro, que é um desafio mundial, mas, por outro lado, também devemos tornar as regras simples e claras para que os verdadeiros investidores possam utilizar as suas criptomoedas sem problemas”, diz Jorge Batista da Silva, presidente da Ordem dos Notários.
Há dois modelos de principais de negociações imobiliárias envolvendo criptoativos. No primeiro e mais simples, o comprador usa os serviços de uma corretora, que converte o valor do ativo digital para uma moeda oficial. No fim da operação, o vendedor recebe o dinheiro em moeda corrente em sua conta bancária.
É assim que a maioria dos negócios vem sendo feita no país.
As dúvidas surgem, no entanto, quando as negociações envolvem a troca de criptoativos entre as partes, com os vendedores recebendo o pagamento pelas transações também em criptomoedas. O procedimento torna-se ainda mais complexo caso os recursos estejam apenas em carteiras de investimento, sem custódia de corretoras.
Essas operações são o principal foco do conjunto de instruções, que pretende que os oficiais de cartório tenham as ferramentas para destrinchar em detalhes as transações.
Apesar do nome, as criptomoedas não são consideradas como verdadeiras moedas em Portugal. Por isso, as transações que usam esses recursos digitais como método de pagamento são classificadas como permutas.
“É feito de um jeito mais moderninho, mas não deixa de ser uma troca. Portanto, é feita uma escritura de permuta, em que o vendedor entrega o imóvel em troca de um determinado número de criptomoedas do comprador”, afirma Patrícia Viana, sócia da Abreu Advogado e especialista em direito imobiliário.
Pelas novas regras, que serão lançadas oficialmente ainda em abril, os notários deverão receber antecipadamente uma série de documentos das partes interessadas no negócio.
Além de documentos de identificação pessoal, são exigidos os registros completos dos criptoativos (desde o momento da aquisição) e das carteiras de armazenamento envolvidas na transação.
As informações serão repassadas, até cinco dias antes da realização da escritura, para as autoridades fiscalizadoras do país —DCIAP (Departamento Central de Investigação e Ação Penal) e a Unidade de Informação Financeira.
Após a comunicação prévia, se não há objeções, os notários avançam para a realização da escritura.
Negócios com valores superiores a € 200 mil (cerca de R$ 1 milhão) terão uma etapa adicional de comunicação às autoridades após a concretização da operação.
Em razão da alta volatilidade do valor das criptomoedas, os notários também precisarão informar uma conversão do valor desses bens para uma moeda reconhecida —como dólar ou euro— no momento da assinatura do contrato de promessa de compra, e também no momento da venda.
“Caso queiram assumir o risco [de estabelecer o valor apenas em criptoativos, independentemente da oscilação no valor da cotação], isso tem de ficar devidamente formalizado”, diz Jorge Batista da Silva.
Paralelamente ao lançamento das orientações, a ON irá lançar um programa de treinamento e capacitação para os oficiais de cartório.
Desde o começo do ano, os profissionais do setor passaram a receber uma enxurrada de pedidos de informação sobre esse tipo de transação imobiliária. Não há, porém, informações sobre a quantidade de negócios que já foram fechados dessa maneira.
Segundo Silva, a cobertura da imprensa internacional sobre as vantagens fiscais em Portugal parece ter impulsionado o movimento.
Um dos casos de maior repercussão foi o da chamada Família Bitcoin: holandeses que decidiram vender tudo que tinham e investir na criptomoeda. Depois de surfar na valorização do ativo e viajar por mais de 40 países, a família —um casal e suas três filhas— decidiu se estabelecer em Portugal justamente pelas razões fiscais.
Advogado especialista na área financeira, Diogo Pereira Duarte diz que tem havido muita procura por transações com criptoativos, não apenas no setor imobiliário.
“Há muitos estrangeiros chegando a Portugal e querendo realizar operações imobiliárias, mas também outros projetos, sobretudo querendo se registrar no Banco de Portugal como um prestador de serviços em ativos virtuais.”
De acordo com o advogado, existe ainda uma forte comunidade de portugueses envolvidos com criptomoedas, também interessados nas transações usando esses ativos.
“A lógica do futuro da internet é de uma realidade em que as pessoas têm vários recursos para efetuar pagamentos. O investidor tem o seu dinheiro na conta bancária de concurso legal, tem a sua wallet com os seus criptoativos, e pode escolher pagar com aquilo que quiser”, explica.
Na avaliação da especialista em direito imobiliário Patrícia Viana, tem havido também um movimento por parte das imobiliárias, que identificaram o potencial dos negócios
“Eu vejo promotores imobiliários tentando se preparar para esse futuro muito próximo em que vão aparecer clientes querendo pagar com criptoativos. Eles mesmos já estão tentando perceber qual é o procedimento que têm de cumprir, até para já ajustar as formas de venda e de promoção online dos imóveis”, diz.
Em um sinal dessa disposição dentro do próprio setor, o mercado imobiliário português está prestes a ganhar, em maio, sua primeira criptomoeda própria.
A Rhamos Properties, em parceria com a Criptoloja (corretora licenciada pelo Banco de Portugal), criou a moeda digital RHP, que serve como meio de pagamento para imóveis promovidos pela imobiliária.
A RHP é uma criptomoeda de valor estável, o que se chama de stablecoin. Um dos principais objetivos, segundo os responsáveis, é ajudar os compradores a reduzir os custos de transferências internacionais para a aquisição das propriedades.
“Um brasileiro que quiser comprar um imóvel de € 500 mil em Portugal (cerca de R$ 2,6 milhões) gastará normalmente pelo menos R$ 50 mil para transferir o dinheiro. Sem contar com a dificuldade que pode ser abrir uma conta estando em outro país”, diz Lázaro Ramos, CEO da empresa.
O empresário destaca que, com o recurso a criptomoedas, o valor da transação cai drasticamente, bastando pagar a taxa de aquisição da corretora.
Mesmo com a entrada em vigor das novas políticas para a realização das transações com criptoativos, o presidente da Ordem dos Notários considera que o cenário ideal é a criação de uma legislação específica, além de uma regulação pelas autoridades da União Europeia.
“Até em termos europeus era importante ficar definido como nós devemos realizar esse tipo de transação, que irá atrair pessoas de todo o mundo. Isso acaba por ser um fenômeno que não é só em Portugal.”
Fonte: Folha de São Paulo