Embora foco da reforma seja tributação do consumo, governo e Congresso aproveitam para corrigir ou alterar outras questões
Poucos temas tiveram mais repercussão nos últimos anos do que a reforma tributária, promulgada via Emenda Constitucional 132. Agora, espera-se a tramitação e conclusão dos projetos de lei que visam regulamentá-la.
Embora o grande foco da reforma seja a tributação do consumo, governo e Congresso vem aproveitando a ocasião de debates para corrigir ou alterar outras questões do sistema tributário brasileiro, como é o caso do imposto sobre transmissão causa mortis e doação, o ITCMD (também conhecido como ITCD ou ITD em alguns estados).
A EC 132 alterou pontos importantes do texto constitucional, e há outras mudanças incluídas em um dos projetos da regulamentação da reforma, qual seja, o PLP 108/2024, em trâmite no Senado.
Abaixo discutiremos brevemente algumas das mudanças já implementadas e outras ainda em discussão no arquétipo do ITCMD.
Progressividade
A principal mudança estrutural diz respeito à previsão de que o ITCMD “será progressivo em razão do valor do quinhão, do legado ou da doação”, já em vigor desde a promulgação da EC 132.
A previsão vem causando furor em razão do potencial aumento da carga fiscal, especialmente em relação às transmissões patrimoniais de maior vulto. Apesar de válida, a preocupação deve ser colocada em perspectiva e seus impactos analisados na prática.
Tome-se como exemplo o estado de São Paulo, onde as heranças e doações são tributadas a uma alíquota fixa de 4%. Em decorrência da EC 132, está em discussão o PL 7/2024, cujo objetivo é alinhar a legislação estadual ao novo contexto constitucional. Se aprovado até o final de setembro deste ano, produzirá efeitos a partir de 2025[1].
Em um cálculo rápido, e considerando valores de 2024, chegariam ao patamar atual de 4% transmissões de até R$ 3,35 milhões. Assim, apenas transmissões em montante superior a esse contariam, de fato, com uma tributação mais gravosa do que a aplicável atualmente. Mesmo uma transmissão de R$ 10 milhões não ficaria tão distante, com uma alíquota efetiva de 5,35%.
A progressividade atualmente em discussão para a legislação paulista é pautada unicamente no valor da transmissão. Em alguns estados em que já há tributação progressiva, as alíquotas podem variar, também, a depender da existência ou não de grau de parentesco entre as partes da transmissão.
Trata-se de apenas um exemplo – diversos outros estados terão que adaptar suas legislações à nova exigência de tributação progressiva. Contudo, o impacto real deverá ser avaliado em cada caso concreto, visto que pode ser expressivo apenas para a transmissão de patrimônios vultosos, como vem se desenhando o caso de São Paulo.
Ponto importante sobre a progressividade, que representa potencial aumento do ITCMD, é que sua implementação deve se submeter à anterioridade nonagesimal e anual, obrigatórias para o imposto. Neste sentido, nos parece que nem mesmo o estado de São Paulo conseguirá aprovar a legislação para que as novas alíquotas sejam aplicadas a partir de 2025.
O ‘teto’ de tributação vai mudar?
Hoje, a alíquota máxima do ITCMD é de 8% (Resolução do Senado 9/1992). Há um projeto, não diretamente associado à reforma tributária, mas trazido à discussão em seu contexto, para elevar esse teto para 16%: o projeto de resolução do Senado 57/2019, que aguarda designação de relator desde fevereiro de 2023. A despeito de sua relevância, não se conhece nenhum movimento recente que procure retomar/acelerar sua tramitação.
Em outra iniciativa de mudança desse “teto”, em 2015, os estados se movimentaram propondo ao Congresso a elevação da alíquota máxima para 20% (cfe. Ofício Consefaz 11/2015). A proposta, contudo, não vingou até a presente data.
Portanto, apesar da “ameaça” constante de aumento, a reforma não dá mostras que trará, ao menos no atual contexto, aumento na alíquota máxima do ITCMD. Vale ressaltar que, ainda que haja uma alteração nesse teto, caberá aos estados incorporarem-na em suas legislações – novamente trazendo o caso de São Paulo como exemplo, vale reforçar que até hoje a alíquota máxima é de 4%, mesmo que o estado seja autorizado pelo Senado a cobrar até 8% desde 1992.
Abertura do inventário: fim da escolha do estado
A EC 132 deslocou a competência do imposto relativo a bens móveis, títulos e créditos, que antes era do estado onde se processasse o inventário ou arrolamento, para o estado onde era domiciliado o de cujus.
Neste sentido, o PLP 108, prevê que o inventário deverá ser processado no estado em que era domiciliado o de cujus, da forma como já ocorre em inventários judiciais.
Essa mudança, que já vale para as sucessões abertas a partir da data de publicação da EC 132, impede que o contribuinte escolha o estado para processamento de inventário extrajudicial, o que permitia certa flexibilidade para escolha de local onde a tributação era menor.
Outras transmissões gratuitas
No projeto, são incluídas como “doações” algumas transmissões entre pessoas vinculadas, como atos societários que resultem em “benefícios desproporcionais” por liberalidade e sem justificativa negocial, tais como distribuição desproporcional de dividendos; ou redução de capital a preços diferenciados.
Tais atos fora do ordinário já devem possuir fundamentação inclusive para atender à legislação civil e comercial, evitando-se responsabilização de administradores, confusão patrimonial etc. De fato, deve haver uma razão negocial que, por exemplo leve um sócio à distribuição de lucros em quinhão superior à sua participação no capital.
A preocupação surge com a expressão “por liberalidade e sem justificativa negocial passível de comprovação”. O “propósito negocial” não é positivado na legislação e merece ser traduzido em critérios que promovam segurança jurídica e coerência ao novo modelo que se pretende. Ademais, ainda que sem propósito negocial, a distribuição proporcional não constituiu liberalidade passível de torná-la doação.
Vale reforçar que o projeto pretende aplicar o mesmo conceito aos casos de perdão de dívida, o que deve impactar empréstimos realizados entre familiares, por exemplo.
Base de cálculo na transmissão de participações societárias
Um último ponto que gera muitas polêmicas no modelo atual e que deve continuar trazendo discussões é a base de cálculo do ITCMD nas transmissões de participações societárias não negociadas em bolsa, incluindo cotas de fundos de investimento.
Isso porque, segundo o PLP 108, caso as quotas ou ações não tenham negociação (ou não tenham tido negociação ativa nos últimos 90 dias), a base de cálculo deve ser, “no mínimo”, o valor patrimonial ajustado “pela avaliação de ativos e passivos a valor de mercado, acrescido do valor de mercado do fundo de comércio, conforme estabelecido na legislação do ente tributante”.
A redação atende o pleito das fiscalizações estaduais. Hoje, é comum que a base de cálculo para esses casos seja o valor patrimonial das quotas ou ações, o que pode inclusive levar a casos de não-tributação (ex. se o patrimônio líquido for negativo). Contudo, apesar de previsto em lei, os fiscos estaduais questionam o cálculo, buscando determinar um “valor justo” à participação transmitida. Se aprovado o texto, na prática, a base de cálculo mínima para a transferência de participações societárias pode ser impactada significativamente.
Conclusão
Muito embora a EC 132 já tenha trazido novidades que se aplicam desde a sua promulgação, a mais importante delas – progressividade, ainda precisa ser instituída por lei pelos estados, dificilmente produzindo efeitos em 2025.
Por outro lado, o PLP 108 é ainda bastante recente, embora algumas de suas alterações quanto ao ITCMD já sejam o reflexo de discussões amadurecidas. É de se esperar que sofra alterações, mas há grandes chances de boa parte do que prevê ser aprovado.
Sem prejuízo, como se viu, os impactos na prática dependerão de cada caso concreto, sendo prudente avaliá-los com cautela para que se chegue a uma dimensão mais precisa de sua extensão.
Fonte: JOTA