Por Flávio Tartuce
Tema que ainda está em aberto no Direito de Família Brasileiro diz respeito ao reconhecimento do vínculo socioafetivo para além dos pais e filhos, surgindo debate sobre a sua viabilidade jurídica nas relações entre irmãos, que são parentes colaterais de segundo grau. A temática ganhou maior repercussão com a decisão do Supremo Tribunal Federal que tratou das questões jurídicas relativas à parentalidade socioafetiva.
Conforme a tese firmada nesse decisum superior, “a paternidade socioafetiva declarada ou não em registro, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios” (STF, Recurso Extraordinário 898.060/SC, com repercussão geral, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 21/9/16, publicado no Informativo 840 do STF). Além de reconhecer a possibilidade de vínculos múltiplos parentais, uma das grandes contribuições do julgado foi a de consolidar a posição de que a socioafetividade é forma de parentesco civil, nos termos do art. 1.593 do Código Civil, na parte em que o diploma legal menciona a “outra origem”. Exatamente nesse sentido, destaque-se o seguinte trecho do voto do Ministro Relator:
“A compreensão jurídica cosmopolita das famílias exige a ampliação da tutela normativa a todas as formas pelas quais a parentalidade pode se manifestar, a saber: (i) pela presunção decorrente do casamento ou outras hipóteses legais, (ii) pela descendência biológica ou (iii) pela afetividade. A evolução científica responsável pela popularização do exame de DNA conduziu ao reforço de importância do critério biológico, tanto para fins de filiação quanto para concretizar o direito fundamental à busca da identidade genética, como natural emanação do direito de personalidade de um ser. A afetividade enquanto critério, por sua vez, gozava de aplicação por doutrina e jurisprudência desde o Código Civil de 1916 para evitar situações de extrema injustiça, reconhecendo-se a posse do estado de filho, e consequentemente o vínculo parental, em favor daquele que utilizasse o nome da família (nominatio), fosse tratado como filho pelo pai (tractatio) e gozasse do reconhecimento da sua condição de descendente pela comunidade (reputatio)” (STF, Recurso Extraordinário 898.060/SC, com repercussão geral, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 21/9/16, publicado no Informativo 840 do STF).
A temática que se analisa neste artigo diz respeito à possibilidade de reconhecimento do vínculo socioafetivo além dos ascendentes e descendentes, ou seja, para outros parentes que formam o núcleo familiar, além dos pais e dos filhos. A título de exemplo, imagine-se o caso de irmãos que são criados como tal em uma família, com os requisitos do tratamento, da reputação e do nome, desde a tenra idade. Ilustre-se com o caso de um homem que tem filho de um relacionamento anterior, e que se casa com uma mulher que tem uma filha, igualmente de outra relação, concretizando-se entre todos os vínculos socioafetivos, desde as infâncias de seus filhos e qualificados pelos elementos mencionados no acórdão do Supremo Tribunal Federal.
Seria possível sustentar a existência de uma sucessão legítima entre esses filhos, tratados e criados como irmãos, colaterais de segundo grau, nos termos dos arts. 1.839, 1.840 e 1.841 do Código Civil? Sempre sustentei que sim, ou seja, ser plenamente possível defender a premissa sucessória entre os irmãos socioafetivos. Com a decisão do Supremo Tribunal Federal, não restam dúvidas quanto a essa possibilidade jurídica, no meu entendimento doutrinário.
Exatamente nessa linha decidiu a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça em outubro de 2022, utilizando a feliz expressão “fraternidade ou irmandade socioafetiva”. Nos termos da tese do aresto, em publicação constante do Informativo 753 da Corte e que teve como Relator o Ministro Marco Buzzi, “inexiste qualquer vedação legal ao reconhecimento da fraternidade/irmandade socioafetiva, ainda que post mortem, pois a declaração da existência de relação de parentesco de segundo grau na linha colateral é admissível no ordenamento jurídico pátrio, merecendo a apreciação do Poder Judiciário”. Ainda nos termos da publicação e do voto, não se pode falar em condição essencial à caracterização do parentesco colateral por afetividade, “consistente em prévia declaração judicial de filiação (linha reta) socioafetiva, em demanda movida por de cujus em relação aos genitores dos requerentes. Desse modo, não se visualiza óbice, em tese, à pretensão autônoma deduzida, calcada na configuração da posse do estado de irmãos”. Diante dessa realidade fática e jurídica, foi julgada como prematura a conclusão das instâncias inferiores de indeferimento da petição inicial, sem que se desse a oportunidade às partes para demonstrar a existência do vínculo socioafetivo entre os irmãos, mesmo que post mortem.
Exatamente como julgou o Supremo Tribunal Federal, concluiu-se ainda na Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça que, “no âmbito das relações de parentesco, a ideia de posse de estado traduz-se em comportamentos reiterados, hábeis a constituírem situações jurídicas passíveis de tutela. Assim, além da própria aparência e reconhecimento social, o vínculo constituído qualifica a real dimensão da relação familiar/parentesco, erigida sobre a socioafetividade, a qual não pode ser ignorada pelo sistema jurídico. A partir desse pressuposto, infere-se que a citada relação/vínculo, identificada por meio da posse de estado, é passível de ser declarada judicialmente. Trata-se, com efeito, de objeto de declaração a existência de uma situação jurídica consolidada, da qual defluem efeitos jurídicos – pessoais e patrimoniais -, a exemplo do eventual direito sucessório alegado na exordial”. Afastou-se, assim, a impossibilidade jurídica do pedido na causa, e a pretensão foi tida como abstratamente compatível com o ordenamento jurídico brasileiro, com a devolução à primeira instância para análise fática e posterior julgamento. O número do processo não foi divulgado por questão de segredo de justiça.
Entendo que a conclusão é perfeita e abre a possibilidade de que, além dos efeitos sucessórios, outras decorrências jurídicas relacionadas ao Direito Civil sejam reconhecidas entre os irmãos socioafetivos. Destaco duas delas, neste breve texto.
A primeira consequência jurídica diz respeito à possibilidade de irmãos socioafetivos pleitearem alimentos um dos outros, desde que preenchidos os requisitos da necessidade do credor e da possibilidade do devedor, previstos no art. 1.694 do Código Civil. Consoante o art. 1.697 da própria codificação privada, “na falta dos ascendentes cabe a obrigação aos descendentes, guardada a ordem de sucessão e, faltando estes, aos irmãos, assim germanos como unilaterais”. Nos termos do Enunciado 341, aprovado na IV Jornada de Direito Civil, em 2006, “para os fins do art. 1.696, a relação socioafetiva pode ser elemento gerador de obrigação alimentar”. O comando legal citado na ementa doutrinária é relacionado aos alimentos entre pais e filhos, mas penso que a premissa pode sim ser aplicada e estendida aos dispositivos seguintes.
A segunda consequência jurídica da possibilidade de vínculo socioafetivo entre irmãos diz respeito aos impedimentos matrimoniais. Como é notório, o art. 1.521 do Código Civil traz um rol taxativo de pessoas que não podem se casar, em situações que envolvem normas cogentes e de ordem pública, por razões diversas e sob pena de sua nulidade absoluta do casamento celebrado (art. 1.548 do CC).
Conforme o seu inciso IV, não podem casar os colaterais até o terceiro grau, inclusive (impedimento decorrente de parentesco consanguíneo, fundado na vedação de relações incestuosas). Não podem se casar, portanto, os irmãos que são colaterais de segundo grau, sejam bilaterais ou germanos – mesmo pai e mesma mãe – ou unilaterais – mesmo pai ou mesma mãe.
Também merece destaque o inciso II desse art. 1.521 do Código Civil, segundo o qual não podem casar os afins em linha reta (impedimento decorrente de parentesco por afinidade). Sabe-se que, nos termos do art. 1.595 da codificação privada, há parentesco por afinidade entre um cônjuge ou companheiro e os parentes do outro consorte ou convivente. Esse impedimento existe apenas na afinidade em linha reta até o infinito, englobando sogra e genro, sogro e nora, padrasto e enteada, madrasta e enteado, e assim sucessivamente. Ademais, vale lembrar que o vínculo por afinidade na linha reta é perpétuo, sendo mantido mesmo nos casos de dissolução do casamento ou da união estável (art. 1.595, § 2.º, do Código Civil).
De toda sorte, merece destaque a consolidada valorização jurídica da afetividade, na relação constituída entre padrastos, madrastas e enteados. Diante desse reconhecimento, tenho defendido há tempos que se deve sustentar a impossibilidade de casamento entre irmãos socioafetivos, que foram criados juntos como tal desde a infância ou tenra idade. Entendo, contudo, que devem eles ser tratados como os irmãos biológicos, incidindo o impedimento matrimonial previsto no citado art. 1.521, inc. IV, da codificação privada e não a regra do inciso II da mesma norma.
A recente decisão do Superior Tribunal de Justiça sobre a “fraternidade ou irmandade socioafetiva” parece dar ainda mais força a essa minha última posição doutrinária. Aguardemos, portanto, os eventuais desdobramentos dessa forma de julgar e como os Tribunais analisarão as consequências aqui pontuadas, a respeito dos alimentos e dos impedimentos matrimoniais.
Flávio Tartuce é pós-doutorando e doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Professor do G7 Jurídico. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.
Fonte: Migalhas