Esperançosa e ingenuamente, fechei a retrospectiva 2019 indagando o que nos esperaria em 2020 e afirmando que “no país onde até o passado é indefinido, uma coisa se pode afirmar com certeza: teremos algo que nenhum de nós foi capaz de prever”, torcendo para que “a surpresa seja boa”. De profeta nada tenho; obviamente estava apenas imaginando algo menor e restrito ao Brasil. Quem poderia antever o terremoto engatilhado, o trem no escuro em nossa direção, a causa de tantas perdas humanas, sociais, econômicas e afetivas que nos marcarão para sempre?
Houve tragédias e traumas, fins e recomeços, assim como erros e avanços. Dezembro chegou, e precisamos, ao menos no tempo, deixar 2020 para trás e olhar para a frente, pensar no amanhã e seguir na (re)construção de um futuro melhor. Mas não sem antes lavrar e registrar o que de mais notável, bom e ruim, em terra brasilis, se passou no mercado e no Direito Imobiliário.
Quando a pandemia desembarcou no Brasil, ainda no primeiro trimestre, provocou pânico e fechamentos em todo o país. E, então, uma questão jurídica enroscada e relevantíssima logo se aninhou entre nós: quais seriam os impactos desse tsunami sobre os contratos, inclusive os imobiliários? Centenas de eventos e artigos, quiçá milhares, foram produzidos em série, e desse caldeirão violento saíram teratologias e genialidades. Aprendemos a entender melhor as aplicações e consequências do caso fortuito e da força maior, e passamos a identificar com rigor técnico os possíveis impactos sobre os contratos, visualizando a floresta: impossibilidades permanente e temporária, frustração do fim do contrato, desequilíbrio superveniente e dificuldade financeira do devedor. O que acontece em cada caso? Há dever de renegociar? As perguntas permanecem sem respostas claras. Embora uma estrada comprida ainda se ponha diante de nós, é inegável nosso avanço até aqui; um verdadeiro salto, aliás.
O lockdown tupiniquim afetou os cartórios, é claro. Elogie-se a rapidez com que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) soube agir no mês de março. Se é verdade que muita coisa já tinha começado a ser praticada em vários Estados, graças à atuação veloz das entidades de categoria e de algumas corregedorias locais, havia vácuos a preencher, e entendimentos a uniformizar. Em suma, os Provimentos 91 (22/3/2020) e 94 (28/3/2020) estabeleceram que: 1) o funcionamento do cartório era obrigatório em todos os dias úteis, com atendimento à distância; 2) onde não fosse possível implantar de imediato o atendimento à distância, e até que isso se efetivasse, faz-se o atendimento presencial, com os cuidados sanitários; 3) cada oficial, a seu critério, poderia receber documentos em forma eletrônica ou por outro meio que comprove a autoria e integridade do arquivo; e suspeitando de falsidade, poderia exigir o original; e 4) a certidão digital solicitada durante o horário de expediente, com indicação da matrícula ou do registro no Livro 3, seria disponibilizada em até duas horas, salvo no caso de atos manuscritos. Águas passadas? Não se sabe. E relembrar é importante, pelo risco de uma segunda onda e porque nem todos os cartórios voltaram a funcionar plenamente. Apenas quatro dias depois do Provimento 94, surgiu o Provimento 95, de 1º/4, que complementou os anteriores e tratou, ainda timidamente, dos documentos eletrônicos. Todos foram prorrogados pelos Provimentos 96 e 99.
Em abril, é de se comemorar a aprovação, em assembleia, do estatuto do ONR, o Operador Nacional do Registro Eletrônico de Imóveis, entidade regulada pelo CNJ, e responsável por implementar e coordenar o sistema, que é integrado por todas as serventias de registro de imóveis do país.
Sim, os holofotes estiveram virados para os cartórios em 2020. É preciso sublinhar, ainda, a edição de outros dois provimentos CNJ.
O Provimento 100, de 26/5, estabeleceu normas gerais para a prática de atos notariais eletrônicos em todo território nacional, revogando as disposições em contrário das corregedorias estaduais. Saímos do ato em papel e presencial para o ato eletrônico, à distância, praticado com mais agilidade e segurança jurídica, por meio de certas ferramentas, com destaque para: 1) a plataforma do e-notariado; 2) a lavratura de escrituras por videoconferência e assinatura digital; 3) certificado digital notarizado; 4) a desmaterialização ou materialização de documentos. A plataforma já está em plena operação e vem promovendo uma verdadeira mudança de hábitos, e permitindo que uma enxurrada de negócios e atos físicos sejam, com segurança, transportados para o ambiente virtual, e que muitos outros já nasçam digitais.
O Provimento 107 (24/6/2020), a seu turno, proibiu “a cobrança de qualquer valor do consumidor final relativamente aos serviços prestados pelas centrais registrais e notariais, de todo o território nacional, ainda que travestidas da denominação de contribuições ou taxas, sem a devida previsão legal”, e estabeleceu que: 1) os custos de manutenção, gestão e aprimoramento dos serviços prestados pelas centrais devem ser ressarcidos pelos delegatários, interinos e interventores vinculados as entidades associativas coordenadoras; 2) as entidades associativas podem custear tais despesas, em nome de seus associados; e 3) as corregedorias locais devem inserir as centrais em seu calendário de correições e inspeções, com a finalidade de verificar a observância das normas vigentes que lhe são afetas.
No mesmo mês, entrou em vigor a Lei 14.010/20, imperfeita e necessária, que trouxe o regime jurídico emergencial e transitório das relações jurídicas de Direito privado (RJET), ou Lei da Pandemia, que impediu ou suspendeu os prazos prescricionais e decadenciais e também de usucapião entre 12/6 e 30/10. A mesma lei, com imprecisão, proibiu certas hipóteses de despejo liminar para ações ajuizadas entre 20/3 e 30/10, e permitiu assembleias condominiais virtuais. O artigo 9º (despejos liminares) chegou a ser vetado pela Presidência da República, mas acabou entrando em vigor em agosto, pela derrubada do veto.
Ainda no atribulado mês de junho, a indicação do REsp 1.871.911-SP à sistemática dos recursos repetitivos pelo STJ reacendeu a antiga e nunca superada discussão envolvendo a extinção dos contratos de compra e venda com alienação fiduciária. Apesar de o ministro Paulo de Tarso Sanseverino admitir o recurso como representativo da controvérsia, a ministra Nancy Andrighi, relatora do caso, entendeu ser prematura sua afetação, sendo necessária uma maior reflexão pelas turmas de Direito privado. Em agosto, a ministra julgou o mérito e manteve o entendimento de prevalência do rito estabelecido pela Lei nº 9.514/97 frente ao artigo 53 do CDC.
Então, no dia 20 de junho ocorreu o fato mais triste do ano em nosso setor: o falecimento do imortal Sylvio Capanema de Souza, vítima do odioso vírus. Em sua homenagem, o Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário (Ibradim), com a participação de muita gente brilhante, produziu um imponente livro de estudos em Direito Imobiliário, com quase 60 artigos de qualidade, uma obra de peso, nada efêmera, em distribuição gratuita aos associados neste mês de dezembro. Versão digital disponível no website do instituto.
Em 16 de julho, foi publicada a Medida Provisória 992, que trazia a alienação fiduciária compartilhada, uma espécie de refil da garantia para obtenção de novos créditos com o mesmo credor. A redação não foi exatamente um mérito do texto legal e, embora o mercado tenha lutado por seu aprimoramento, faltou ambiente para sua apreciação, e a MP caducou em novembro. Talvez o tema ainda volte com nova roupagem. Quem viver, verá.
Objetivando a redução de burocracias, no fim de julho foi apresentado ao Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 3.999/20, que visava a alterar a Lei de Locações para autorizar o despejo e a consignação de chaves extrajudiciais. Se aprovado o PL, as novas regras permitirão que se resolvam mais rapidamente casos que hoje dependem exclusivamente da atuação do Poder Judiciário, permitindo: 1) ao locador a retomada mais célere do imóvel em caso de falta de pagamento de aluguéis e/ou encargos; e 2) ao locatário a chance de consignar as chaves em tabelionato de notas na hipótese de denúncia vazia da locação.
Por meio da Medida Provisória 996, de 25 de agosto, o governo federal instituiu o Programa Casa Verde e Amarela, que representa, em certa medida, uma reformulação do programa Minha Casa Minha Vida. Em linhas gerais, o programa beneficia famílias com renda mensal de até R$ 7 mil em áreas urbanas ou com renda anual de R$ 84 mil em áreas rurais, divididas em três grupos (faixas de renda). Inclui financiamento à aquisição, com redução das taxas de juros finais, renegociação de dívidas, subsídio, Reurb, obras de saneamento, infraestrutura, assistência para construção ou melhoria de moradias, entre outros, privilegiando as regiões do Norte e Nordeste, onde os juros serão menores. A MP ainda requer apreciação do Congresso Nacional.
Em setembro, viralizou a notícia de encerramento do processo mais longo da história do Brasil. Após 124 anos de tramitação, o STF finalmente julgou a ação possessória movida pela Princesa Isabel e seu marido, em que se discutia a posse e a propriedade do atual Palácio Guanabara, no Rio de Janeiro, mantendo a entendimento de que o casal tinha apenas direito de habitação do imóvel, o qual foi extinto com a proclamação da República, sendo a propriedade da União Federal.
Auspiciosamente, o mercado imobiliário se mostrou resiliente na crise. Com os juros do crédito imobiliário no seu menor patamar histórico, as vendas aceleraram, mesmo com a pandemia! Novos consumidores chegaram, atraídos por linhas de financiamentos mais baratas. Em setembro, o crédito imobiliário com recursos de poupança registrou alta de 70% em relação a 2019, segundo a Abecip, o melhor resultado da série histórica iniciada em julho de 94. Empresas voltaram a captar recursos no mercado de ações, abrindo capital na bolsa de valores. O setor de habitação registrou uma das janelas de IPOs (ofertas iniciais de ações) mais movimentadas de todos os tempos entre julho e agosto. Os fundos de investimento imobiliários (FIIs) não ficaram para trás. Contabilizando-se todas as modalidades (tijolo, papel e híbrido), a indústria ultrapassou a impressionante marca de um milhão de investidores pessoas físicas, superando o patamar de R$ 100 bilhões de valor de mercado, segundo boletim mensal divulgado pela B3 em outubro deste ano.
Já no último trimestre do ano, o TJ-RJ julgou o Incidente de Uniformização de Jurisprudência nº 0028314-18.2018.8.19.0002, determinando, por unanimidade: 1) ser válida a cláusula que estipula o pagamento da taxa de decoração pelo comprador, afastando a Súmula 351 do próprio tribunal; e 2) que prescreve em três anos a pretensão de ressarcimento de taxa de decoração e de ligações definitivas (CC, artigo 206, §3º, IV). A decisão acolheu o entendimento firmado na tese 938 do STJ, demonstrando respeito ao sistema de precedentes.
E, como se tudo não bastasse, 2020 foi selado com o crescimento da mediação, que timidamente começa a despontar como eficiente método alternativo de solução de controvérsias, mais barato, célere e controlado do que um litígio, em que o interesse das partes é decidido pelo juiz ou pelo árbitro.
Para terminar, se não for pedir demais, eis meus três desejos para 2021 no Direito Imobiliário: 1) que o Congresso Nacional nos surpreenda e aprove leis de qualidade, especialmente alguns bons projetos que já estão na casa; e que nós, do setor privado, possamos contribuir cada vez mais para isso; 2) que os Estados e municípios, por interesse público, consigam montar equipes qualificadas nas áreas que afetam o setor imobiliário, pois ele, quando pujante, produz muitos empregos e recursos para o poder público implementar suas políticas sociais; e 3) que o Ministério Público e o Judiciário, com leis melhores, apoiados na boa produção doutrinária, possam contribuir para aumentar, consistentemente, a segurança jurídica na área. Oxalá!
Fonte: Conjur