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Silmar de Oliveira Lopes – Professor e Advogado. Especialista em Direito Notarial e Registral

Recentemente foi publicado no jornal Estadão um artigo denominado “A burocracia como negócio” onde apresenta os cartórios brasileiros como um grande entrave ao desenvolvimento, chegando ao ponto de acusar a existência de um “cartel” que explora a população com taxas elevadas e rituais anacrônicos.

A princípio, a narrativa é sedutora e a retórica escrita bem utilizada para “dizer o que querem ouvir” com a intenção de convencer o leitor de que um “povo produtivo” não é possível ante a existência de uma “máquina cartorial” que tudo encarece e atrasa.

Contudo, evidentemente o artigo demonstra um absoluto desconhecimento do que hoje é a atividade notarial e registral, traduzindo uma visão injusta e irreal.

Obviamente que falhas, problemas e até mesmo pessoas má intencionadas não são inexistentes no âmbito cartorial, porém, é verdade inconteste que são exceções.

Para se discutir seriamente modernização do Estado associada a uma eficiência econômica, há que se
reconhecer uma premissa básica: sem cartórios o Brasil seria muito mais burocrático, mais litigioso e muito menos seguro para celebrar negócios – especialmente os imobiliários.

Para demonstrar a veracidade da premissa, alguns pontos serão explicados adiante.

1 – Os Tabeliães e Registradores não são empresários. São agentes públicos que exercem função pública delegada pelo Estado, não remunerada pelos cofres públicos.

Diferente do texto publicado no Estadão, os cartórios não são empresas e muito menos exploram um “feudo” protegido pelo Estado. Isso distorce a natureza da atividade.

Para exercer a função de Notário e Registrador exige-se prévia aprovação em concurso público e, quando
aprovados, passam a exercer uma função pública delegada, e rigorosamente fiscalizada pelo Poder Judiciário e pelo Conselho Nacional de Justiça.

Em relação à remuneração dos Tabeliães e Registradores, esta decorre de emolumentos com valores
definidos pelo poder legislativo, cujo recebimento é condicionado à efetiva prestação do serviço público.

Chamar isso de “cartel” é, no mínimo, uma nítida demonstração de não conhecer as mais comezinhas
regras inerentes à atividade. Ademais, equiparar os cartórios a um cartel demonstra até mesmo desconhecimento da etimologia da palavra, pois cartel pressupõe liberdade para combinar preço e restringir oferta. Aqui temos exatamente o oposto, pois os valores dos emolumentos são definidos em leis que são elaboradas pelo Poder Judiciário e aprovadas pelo Poder Legislativo. Os cartórios não participam de nenhuma etapa da definição dos valores dos emolumentos.

É legítimo discutir se a tabela de emolumentos é adequada, mas isso é debate de política pública
tributária que não pode ser objeto de acusação leviana de conluio privado.

2 – Os Tabeliães e Registradores como agentes de desburocratização e guardiões da segurança jurídica.

A crítica mais insistente do texto publicado no Estadão é a de que cartórios seriam “balcões, carimbos e
taxas” que apenas dificultam a vida das pessoas.

Trata-se de uma visão deturpada e emocionada de quem simplesmente ignora o movimento silencioso das últimas duas décadas: os cartórios representam um dos setores que mais desburocratizaram serviços no Brasil, tais como:

  • Realização de divórcios, inventários e partilhas em
    cartórios ainda que haja beneficiários incapazes;
  • Realização de Usucapião extrajudicial;
  • Realização de Adjudicação compulsória extrajudicial;
  • Realização de retificação de área e regularização
    fundiária;
  • Produção de prova extrajudicial com fé-pública por
    meio da Ata Notarial;
  • Validação de documentos para uso no exterior
    (Apostilamento);

Aquilo que para o leigo pode parecer “mais um carimbo” é, na realidade, um atalho institucional, ou seja,
um único ato que substitui múltiplos procedimentos, reduzindo etapas, consolidando documentos e entregando um resultado com total segurança jurídica.

A Segurança Jurídica não é um luxo ou uma diretriz filosófica constitucional. Trata-se de um elemento
substancial e imprescindível para o desenvolvimento de uma sociedade.

Em qualquer economia minimamente sofisticada, negócios de alto valor – especialmente imobiliários e
societários – dependem de confiança institucional para saber que aquele imóvel está em nome de quem diz estar; que não há penhoras ocultas; que o contrato foi celebrado por quem tinha poderes para tanto; que a assinatura é de fato de quem figura no documento etc.

Nos países em que se renunciou a sistemas robustos de registro e notariado, o preço foi pago em
insegurança, litígios intermináveis e prêmios de risco mais altos – que se traduzem em juros maiores, seguros mais caros e retração de investimentos.

Em um país como o Brasil, com farto histórico de grilagem, fraudes imobiliárias, falsificação de
documentos e instabilidade institucional, é difícil imaginar desenvolvimento econômico minimamente sustentável sem uma estrutura notarial e registral forte, tecnicamente apurada e presente em todos os rincões do nosso território.

3 – A Desjudicialização como vetor de celeridade e economia para o Cidadão e para o Estado.

Muito diferente do que fora posto no artigo, os cartórios não são parte da burocracia que congestionou o Judiciário – eles são parte relevante da solução para desafogá-lo.

Cada ato lavrado em cartório, viabilizado pela desjudicialização, representa, pelo menos, um processo
judicial a menos. Isso significa economia de tempo e de recursos públicos: menos juízes, servidores, perícias, audiências; mais espaço para que o Judiciário se concentre nos conflitos efetivamente litigiosos e complexos.

Imaginemos o tamanho da economia ao constatarmos que, desde 2007, foram realizados mais de 50
milhões de atos via sistema extrajudicial
, incluindo 2,6 milhões de inventários, 1,2 milhão de divórcios, 52,7 milhões de reconhecimentos de paternidade e 12,3 milhões de apostilamentos.

Em relação ao cidadão, o ganho é ainda mais evidente, pois os prazos incomparavelmente menores; o custo é previsível e, na maioria das vezes, muito menor do que seria em relação ao processo judicial.

A desjudicialização não é um capricho corporativo, mas sim uma política pública assumida pelo legislador e pelo Conselho Nacional de Justiça justamente para responder às demandas da sociedade em tempo razoável e com menos impacto econômico.

4 – CONCLUSÃO
Muitas outras razões poderiam aqui ser exploradas para desdizer o artigo do Estadão, mas as breves
palavras já expostas demonstram de forma indubitável que é possível sim desburocratizar com responsabilidade e que tecer críticas levianas e populistas aos cartórios, ao invés de plantar um debate sobre a modernização do Estado, acaba por instigar uma verdadeira demolição institucional.

Defender a modernização do país não exige demolir instituições, especialmente os serviços notariais e
registrais que, apesar de eventuais falhas humanas pontuais, têm sido fortes aliados e protagonistas na desjudicialização, na simplificação de procedimentos e na garantia da segurança jurídica.

Se queremos um Brasil menos burocrático, mais competitivo e mais justo, o caminho não é demonizar
cartórios, mas tê-los como aliados nesse processo e trazer sempre sugestões e pautas para melhorias e otimização da atividade notarial e registral.

Em vez de destruí-los em nome de uma eficiência abstrata, é mais sensato utilizá-los – e aprimorá-los –
como aquilo que já vêm sendo: protagonistas da desjudicialização, guardiões da segurança jurídica, bem como um dos maiores pilares de estabilidade das relações sociais e econômicas no Brasil.


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