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Nos compromissos de compra e venda de imóveis, a confiança não se limita à entrega da unidade ou ao pagamento do preço. O consumidor, na condição de compromissário comprador, deposita legítima expectativa de que a incorporadora — compromissária vendedora — cumprirá não apenas a prestação principal, mas também os deveres anexos de cooperação, lealdade e informação, inerentes à boa-fé objetiva [1].

Quando tais deveres são violados — seja pela omissão de prazos, pela ausência de atos de execução do empreendimento ou por condutas contrárias ao cumprimento da obrigação — a expectativa do adquirente é frustrada. Nesse momento, rompe-se a confiança [2]: não apenas no cumprimento da prestação em si, mas na própria seriedade da vendedora. A frustração da expectativa e o abalo da confiança tornam-se, assim, elementos centrais na análise do inadimplemento contratual.

Essa lógica reflete um princípio que atravessa séculos: da fides romana à treue medieval, a palavra empenhada continua a ser o alicerce das relações negociais, especialmente nas operações imobiliárias, em que o consumidor compromissário aposta sua confiança no projeto e na incorporadora que o promete.

Tanto nas negociações preliminares quanto após a celebração do contrato, é possível que uma das partes adote postura desleal, buscando apenas o próprio interesse e causando prejuízos ao outro contratante [3]. O depósito de confiança é, aqui, o eixo central: o compromissário comprador, ao assumir o pagamento das parcelas, acredita que o passo seguinte será a escritura definitiva. A vendedora, por sua vez, confia que o adquirente honrará o preço ajustado [4].

Essa confiança recíproca é tutelada pelo direito porque se ancora em expectativas legítimas, racionais e objetivamente compreensíveis. A boa-fé, portanto, não protege esperanças vagas ou ilusórias, mas apenas expectativas justificadas pelo vínculo obrigacional. É nesse equilíbrio que reside a verdadeira segurança das relações contratuais.

As partes, desde a negociação, têm o dever de não violar expectativas recíprocas legitimamente criadas pelos seus próprios atos. A expectativa será justa ou não. Essa “justiça”, no entanto, só existe quando os elementos que acompanham as declarações comprovam fundadas razões para que a parte atingida acreditasse na solidez das intenções da parte adversa [5].

Deveres laterais de conduta

Imagine-se a hipótese em que a incorporadora, compromissária vendedora, desde o início sabe que não conseguirá cumprir o prazo de entrega, mas ainda assim assegura ao compromissário comprador que honrará o contrato. Embora a prestação seja objetivamente possível e ainda útil, a violação da confiança pode levá-lo a resolver o negócio, pois não lhe convém manter o patrimônio imobilizado nas mãos de quem rompeu a lealdade.

Nem toda expectativa, contudo, será juridicamente legítima. É indispensável analisar o caso concreto e suas circunstâncias, desde a fase pré-contratual, para diferenciar esperanças meramente subjetivas da legítima expectativa tutelada pelo direito. Como observou Ruy Rosado de Aguiar Júnior, não se trata dos desejos do contratante, mas da expectativa fundada em dados objetivos fornecidos pelo contrato [6].

Essa legítima expectativa nasce da aparência de seriedade, firmeza e comprometimento de uma das partes quanto à celebração ou ao cumprimento do contrato. Quando o rompimento é abrupto, frustra-se a expectativa racionalmente cultivada pelo outro contratante, gerando consequências jurídicas relevantes.

Como ensina Karl Larenz, a relação obrigacional não se limita à entrega do bem ou ao pagamento do preço. Ela abrange também deveres laterais de conduta — lealdade, informação, cooperação — cuja violação pode representar verdadeira quebra da confiança depositada, abalando a própria essência do vínculo contratual [7].

O contrato de compra e venda gera direito pessoal entre as partes, mas não se reduz a preço e registro, trata-se de relação pautada por critérios de cooperação [8]. Isso significa que, além da prestação central, existem deveres mútuos: ao vendedor, cuidar do bem até a entrega e informar riscos relevantes; ao comprador, comunicar alterações de sua condição financeira ou providenciar documentos para financiamento.

O cumprimento contratual, desde a formação até a execução, é um processo de colaboração. Envolve prestações principais, mas também interesses de proteção, expectativas legítimas e deveres de cooperação que instrumentalizam a relação.

Os deveres laterais dizem respeito não ao que prestar, mas a como prestar. São eles que asseguram lealdade, cooperação e informação para que o contrato alcance plenamente sua função [9]. Judith Martins-Costa reforça a distinção entre deveres primários, secundários e anexos, destacando que é nesses últimos que a boa-fé se concretiza [10].

Esses deveres podem impor condutas positivas, como informar, ou negativas, como não frustrar injustificadamente a confiança gerada [11]. Para António Menezes Cordeiro, sua função é proteger as partes e assegurar a efetividade do contrato. A violação desses deveres, portanto, gera frustração da legítima expectativa e compromete toda a relação obrigacional [12].

No mercado imobiliário, isso é evidente. O compromissário comprador deve declarar corretamente sua condição financeira, sob pena de frustrar a expectativa empenhada pela incorporadora. Já a compromissária vendedora deve informar atrasos ou riscos que possam comprometer a entrega da unidade. Quando omissões ocorrem, a confiança se rompe e as consequências vão da indenização à resolução do contrato, inclusive por inadimplemento antecipado, como no caso de obras paralisadas onde o adquirente não tem notícia de evolução da incorporação.

Verdadeiro ativo

A título ilustrativo, o Tribunal de Justiça de São Paulo enfrentou situação semelhante ao julgar a Apelação n. 1011552-48.2019.8.26.0011 [13]. Nesse caso, o compromissário comprador havia firmado contrato com previsão de entrega em 1/1/2020, acrescido do prazo de tolerância de 180 dias. Antes mesmo do vencimento, em setembro de 2019, a construtora notificou o adquirente informando novo cronograma: a emissão do habite-se passaria para dezembro de 2020.

O comprador, não anuindo à alteração, propôs ação de resolução por inadimplemento antecipado, fundamentando-se na declaração de não cumprimento da construtora. Esta, em sua defesa, alegou que o compromissário não poderia reclamar, pois havia deixado de pagar parcelas do contrato.

O relator, desembargador Francisco Loureiro [14], manteve a sentença de primeira instância e reconheceu o inadimplemento da construtora [15], determinando a devolução integral dos valores pagos. Amparado em Ruy Rosado de Aguiar Júnior [16], aplicou a teoria do inadimplemento antecipado, entendendo que a declaração de alteração do prazo configurava quebra da confiança. Destacou, ainda, que o compromissário comprador [17] pode suspender o pagamento quando houver fundado receio de não receber a unidade, aplicando-se, nesse ponto, a exceção do contrato não cumprido (exceptio non adimpleti contractus[18].

Novamente, vê-se que o elemento decisivo foi a perda da confiança: embora a construtora não tenha declarado abertamente que não cumpriria, a simples dilação do prazo representou violação da legítima expectativa e fundamento suficiente para a resolução do contrato.

A quebra da confiança atinge até a função social do contrato, pois não há valor social em um vínculo destituído de fidúcia [19]. Ruy Rosado de Aguiar Júnior acrescenta que a quebra antecipada pode decorrer de ações — como vender algo que não poderá ser entregue — ou de omissões, como a ausência de medidas indispensáveis ao cumprimento [20].

Em última análise, a confiança é o verdadeiro ativo que sustenta os contratos. Quando ela se rompe, não se perde apenas a expectativa de uma prestação, mas o próprio valor social do negócio jurídico.

O contrato é muito mais que um papel assinado: é uma aposta recíproca de confiança. No compromisso de compra e venda, o bem mais valioso não é o imóvel em si, mas a palavra empenhada que, quando se quebra, não há cláusula que a substitua — e é o Direito que deve intervir para restaurar o equilíbrio e proteger a confiança que move o mercado.

[1] MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para sua aplicação. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 86.

[2] CARDOSO, Luiz Philipe Tavares de Azevedo. Inadimplemento antecipado do contrato no direito civil brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2015, p.115.

[3] ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 2019, p. 106.

[4] MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para sua aplicação. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 442.

Fonte: Conjur

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