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Gabriel Vaccari

Um alerta importante para quem busca economizar no planejamento sucessório: uma estrutura complexa, conhecida como “Sistema de 3 Células”, tem sido promovida como uma solução para reduzir a carga tributária na transmissão de bens a herdeiros. No entanto, o que parece um caminho para a economia pode se transformar em um pesadelo fiscal, com riscos que superam em muito o valor de imposto que se busca economizar.

No último dia 31, a Receita Estadual do Rio Grande do Sul (Sefaz-RS) lançou um programa de autorregularização de ITCD, visando a coibir planejamentos sucessórios irregulares. Essa iniciativa, embora específica para o estado, serve de alerta nacional para a atenção crescente dos órgãos fiscais a essas manobras.

No portal da Sefaz-RS, consta que a fiscalização é especificamente sobre o “Sistema de 3 células”, conforme se extrai:

“Modelo de ‘holding 3 células’ tem sido usado para reduzir artificialmente o imposto devido na transferência patrimonial; objetivo é recuperar R$ 5 milhões até o final de agosto”.

Ou seja, o Fisco do Rio Grande do Sul já reconheceu a abusividade da estrutura e está intimando os contribuintes para realizarem uma autorregularização, pagando o imposto devido (ITCD) de forma correta.

O não pagamento (autorregularização) pode acarretar em consequências muito mais gravosas para as famílias, como, por exemplo, multa de 75%, além de correção e juros de mora.

Entendendo a mecânica fraudulenta

O “Sistema de 3 Células” é uma engenhosa, mas perigosa, estrutura que busca reduzir a base de cálculo do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCD). A mecânica é complexa, mas vamos simplificá-la para expor os riscos:

  1. Criação da “Holding Célula Cofre” (HCC): Os pais (patriarcas) criam uma primeira empresa (geralmente LTDA) e transferem seus bens (imóveis, outras participações, etc.) para ela, usando o valor que consta na Declaração de Imposto de Renda (valor contábil ou histórico). Exemplo: Patrimônio de R$ 1 milhão é integralizado na HCC. (Vamos considerar ainda que o valor de mercado deste patrimônio seja de R$ 5 milhões).
  2. Criação da “Holding Célula Veículo” (HCV): Em seguida, criam uma segunda empresa (HCV), também LTDA. Os pais transferem 100% das cotas da HCC para a HCV. No entanto, essa transferência é feita por um valor muito menor que o valor real da HCC. Exemplo: As cotas da HCC (que possuem o valor contábil de R$ 1.000.000,00) são integralizadas na HCV por apenas R$ 100.000,00. A enorme diferença (R$ 900.000,00) é registrada na contabilidade da HCV como ágio na subscrição de capital.
  3. Criação da “Holding Célula Destino” (HCD): Cria-se uma terceira empresa (HCD), LTDA, com capital social baixo, integralizado em dinheiro pelos pais. Exemplo: Capital de R$ 100.000,00.
  4. Doação: Os pais doam aos herdeiros (geralmente a nua-propriedade) das cotas da HCD, que tem um valor patrimonial baixo (R$ 100.000,00 no exemplo). O ITCD incidiria sobre este valor reduzido.
  5. Aquisição Indireta: Posteriormente, a HCD (agora dos herdeiros, talvez com os pais como usufrutuários) adquire as cotas da HCV. Como a HCV detém a HCC, que por sua vez detém os bens originais, a HCD passa a controlar indiretamente todo o patrimônio, mas o imposto (ITCD) inicial teria sido calculado sobre um valor artificialmente baixo.

A vantagem aparente dessa estrutura é a redução drástica da base de cálculo do ITCD, que incidiria sobre R$ 100.000,00 (valor da HCD doada) em vez de R$ 5.000.000,00 (considerando a incidência sobre o valor de mercado dos bens integralizados na HCC). Considerando alíquotas de ITCD entre 4% e 8%, a economia pareceria significativa.

A armadilha está em duas frentes: a tributação do ágio e a desconsideração da estrutura por falta de propósito negocial nos termos do artigo 116, Parágrafo único: “A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária. (Incluído pela Lcp nº 104, de 2001).”

O perigoso ágio interno e seus custos ocultos

A grande falha desta estrutura reside no ágio interno gerado na HCV. A legislação tributária federal, especialmente após a Lei nº 12.973/2014, é extremamente restritiva e proíbe a dedução fiscal de ágio criado em operações entre partes relacionadas.

O ágio gerado nessa operação não é um ganho real, mas um valor artificialmente criado entre empresas do mesmo grupo familiar. O Fisco pode interpretá-lo como um ganho de capital tributável, com uma alíquota que pode chegar a 34% (IRPJ e CSLL) sobre o valor do ágio, caso a empresa seja optante pelo Lucro Presumido.

Isto, pois, todo acréscimo patrimonial deve ser tributado, salvo se a lei disser que não será tributado. E hoje, essa possibilidade (não tributação do ágio) só é prevista legalmente para uma sociedade anônima pelo lucro real (artigo 520 do RIR/18).

Inclusive, existe em tramitação o Projeto de Lei 2081/19 que tem como principal objetivo alterar a legislação do Imposto de Renda para estender às sociedades limitadas (LTDA) um benefício tributário que já é aplicável às empresas de capital aberto (sociedades anônimas).

Reforçando este entendimento, temos Solução de Consulta Cosit nº 134, de 10 de maio de 2024:

Assunto: Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica – IRPJ LUCRO REAL. SOCIEDADE POR AÇÕES. AÇÕES EM TESOURARIA. DISPOSITIVO DO RIR/18. NÃO APLICABILIDADE À SOCIEDADE LIMITADA. Os comandos normativos contidos no inciso III e no parágrafo único do art. 520 do RIR/18 são direcionados às pessoas jurídicas constituídas sob a forma de sociedades por ações, não se aplicando às sociedades limitadas. LUCRO REAL. SOCIEDADE LIMITADA. PERDAS NA AQUISIÇÃO E POSTERIOR CANCELAMENTO DE QUOTAS EM TESOURARIA. INDEDUTIBILIDADE. A perda registrada na aquisição e posterior cancelamento de quotas societárias em tesouraria, por sociedade limitada, é indedutível para fins de determinação do Lucro Real. Dispositivos Legais: Constituição Federal de 1988, art. 150, § 6º; Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976, art. 2º; Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, arts. 1º e 3º; Decreto nº 9.580, de 22 de novembro de 2018, RIR/18, art. 520, III e parágrafo único, do Anexo.

Ou seja, no cenário atual uma empresa limitada pelo lucro presumido ao ter a formação de reserva de capital (ágio), será tributada como ganho de capital pelo acréscimo patrimonial. Dizer o contrário é negar o óbvio e ignorar a legislação vigente.

Em nosso exemplo prático, um ágio de R$ 900 mil poderia gerar um imposto de R$ 306 mil, um custo que anula e supera qualquer “economia” inicial.

Desconsideração fiscal do planejamento abusivo e sem propósito negocial

Este é o ponto central da fiscalização iniciada pela Sefaz do Rio Grande do Sul.

A estrutura das “3 Células” foi questionada pela fiscalização sob a ótica da falta de propósito negocial e do planejamento tributário abusivo.

O artigo 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional (CTN), permite ao Fisco desconsiderar atos ou negócios feitos com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do imposto.

E foi exatamente isso que aconteceu no caso em debate, o Fisco (Sefaz-RS) entendeu que o único ou principal objetivo da complexa estrutura foi reduzir artificialmente a base do ITCD, sem um propósito de negócio real, e, portanto, um planejamento abusivo.

O entendimento do fisco encontra respaldo não só no Código Tributário Nacional, como na jurisprudência pacífica do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o qual vem se posicionando de forma reiterada:

Agravo de Instrumento Nº 5209254-15.2023.8.21.7000/RS TIPO DE AÇÃO: ITCD – Imposto de Transmissão Causa Mortis RELATORA: Desembargadora LAURA LOUZADA JACCOTTET AGRAVANTE: MARA ROSANI SILVEIRA AYRES AGRAVANTE: NERY MACHADO SILVEIRA AGRAVADO: ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL Data de Julgamento: 29-11-2023 AUTO DE LANÇAMENTO. DÉBITO FISCAL. ITCD. HOLDING PATRIMONIAL. AGROPECUÁRIAS. DOAÇÃO DE QUOTAS DE SOCIEDADES EMPRESARIAIS. SIMULAÇÃO DE VENDA POR PREÇO VIL ENTRE FAMILIARES – PAI E FILHOS.

Apelação/Remessa Necessária Nº 5001481-50.2021.8.21.0022/RS TIPO DE AÇÃO: ITCD – Imposto de Transmissão Causa Mortis RELATOR: Desembargador CARLOS ROBERTO LOFEGO CANIBAL Data de Julgamento: 28-06-2023 ITCMD. COMPETÊNCIA DO ESTADO PARA A EXIGÊNCIA. REGULARIDADE DA DESCONSIDERAÇÃO DA CESSÃO ONEROSA. CARACTERIZAÇÃO DE DOAÇÃO DE QUOTAS SOCIAIS. AJUSTE DA BASE DE CÁLCULO. MULTA COM EFEITO CONFISCATÓRIO.

APELAÇÃO CÍVEL. TRIBUTÁRIO. Apelação/Remessa Necessária Nº 5125592-72.2021.8.21.0001/RS TIPO DE AÇÃO: ITCD – Imposto de Transmissão Causa Mortis RELATORA: Desembargadora MARILENE BONZANINI APELANTE: ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL (RÉU) APELADO: AUGUSTO FEDERHEN (AUTOR) APELADO: EMILIA FEDERHEN LEIDENS (AUTOR) APELADO: MONICA FEDERHEN (AUTOR) APELADO: VALDIR JOSÉ FEDERHEN (AUTOR) Data de Julgamento: 06-04-2023 AÇÃO ANULATÓRIA. INCIDÊNCIA DO ITCD SOBRE COMPRA E VENDA, ENTRE PAI E FILHOS, DE QUOTAS DE PARTICIPAÇÃO DE EMPRESA. SIMULAÇÃO RECONHECIDA. FATO GERADOR. – O Sistema Constitucional Tributário Brasileiro Não Proíbe O Planejamento Tributário, Isto É, A Redução Da Carga Tributária Pelo Contribuinte, Que Realiza Suas Atividades De Forma Menos Onerosa, E, Assim, Deixa De Pagar Tributos “Quando Não Configurado Fato Gerador Cuja Ocorrência Tenha Sido Licitamente Evitada” (ADI 2446, Relª: CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, Julgado Em 11/04/2022). – Todavia, Constatada A Configuração Do Fato Gerador Do ITCD, Constituído Na Transferência De Cotas De Pessoa Jurídica A Título Gratuito, Uma Vez Que, A Rigor, Frente Ao Valor Irrisório Atribuído À Operação, Tratava-Se De Doação Pura Travestida De Cessão A Título Oneroso, É Possível Constatar A Tentativa De Burlar A Incidência Do Imposto Referido, Não Havendo, Portanto, Qualquer Nulidade No Auto De Lançamento Em Questão.

Portanto, nos resta demonstrado e claro que a tendência de quem não realizar a autorregularização será amargar prejuízos ainda maiores com as penalidades que serão impostas pelo fisco.

Custo-benefício devastadora

Vamos colocar isso em números. No nosso exemplo, para não pagar R$ 400 mil de ITCD (considerando 8% sobre R$ 5.000.000 de patrimônio), a família que adere a essa estrutura arrisca:

  • O pagamento do ITCD integral, mas agora com multas, correção e juros, que podem, no mínimo, dobrar o valor.
  • A tributação do ágio como ganho de capital, que no nosso exemplo representaria R$ 306 mil.

A conta final facilmente ultrapassa R$ 1,2 milhão, um prejuízo três vezes maior do que o imposto que a família tentou evitar.

A pergunta crucial para qualquer família é: vale a pena o risco? O risco de pagar 34% de imposto sobre o ágio, somado ao risco de ter toda a estrutura desconsiderada, justifica a aparente economia imediata no ITCD? A lição é clara: a busca por atalhos fiscais pode levar a um caminho sem volta, onde a ilusão de economia é rapidamente substituída pela amarga realidade de prejuízos gigantescos.

Fonte: Conjur

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