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Em entrevista ao CNB/GO, a médica nefrologista Juliana de Oliveira Barbosa fala sobre os desafios da doação de órgãos em Goiás, o papel da AEDO na redução da recusa familiar e a importância de expressar, em vida, o desejo de doar

A doação de órgãos é um dos gestos mais nobres que um ser humano pode realizar após a sua partida — e, ao mesmo tempo, um dos mais cercados de dúvidas, tabus e desinformação. Em Goiás, apesar dos avanços na medicina e do trabalho incansável de equipes especializadas, o índice de recusa familiar à doação de órgãos ainda é alto, o que compromete diretamente a esperança de centenas de pacientes que aguardam na fila por um transplante. Neste contexto, iniciativas como a AEDO (Autorização Eletrônica de Doação de Órgãos) surgem como ferramentas promissoras para transformar esse cenário, fortalecendo a vontade do doador e dando segurança jurídica ao processo.

Para entender melhor essa realidade, o CNB/GO, conversou com a médica nefrologista Juliana de Oliveira Barbosa, responsável técnica de uma das equipes de transplante renal do estado de Goiás. Com vasta experiência na área, ela acompanha de perto todas as etapas do processo — desde a inclusão do paciente na fila até o pós-operatório — e traz uma visão sensível e técnica sobre os desafios enfrentados na captação de órgãos, especialmente em relação à recusa familiar e à falta de informação sobre o tema.

Nesta entrevista, Dra. Juliana compartilha sua vivência com os pacientes, explica como a AEDO pode mudar o cenário da doação no Brasil e reforça a importância de expressar em vida o desejo de ser doador. Com empatia e compromisso, ela defende a ideia de que doar é um ato de amor que transcende a vida — e que cada cidadão tem um papel fundamental na construção de uma cultura da doação.

Confira a entrevista na íntegra:

CNB/GO: Dra. Juliana, para começarmos: a senhora poderia contar um pouco sobre o seu trabalho à frente da equipe de transplante renal e qual é a realidade da doação de órgãos hoje no estado de Goiás?

Juliana de Oliveira: É um trabalho muito gratificante. Tenho a oportunidade de acompanhar o paciente desde o pré-transplante quando ele passa por avaliação para dar início aos exames para ser inscrito em lista. Acompanhamos todas as ofertas de rins e fazemos a análise dos doadores e dos nossos receptores em espera. Acompanhamos todo o processo do pós-operatório durante a internação até a alta hospitalar. E ainda fazemos o seguimento no pós-transplante através das consultas ambulatoriais. Costumo brincar com os pacientes que é um verdadeiro casamento.

Hoje infelizmente o estado de Goiás está bem abaixo da média nacional em termos de recusa familiar quanto a doação de órgãos.

CNB/GO: Quais são os principais desafios enfrentados pelas equipes médicas na captação de órgãos, especialmente os rins?

Juliana de Oliveira: Um dos grandes desafios são os mitos que giram em torno do assunto. Especialmente quanto ao diagnóstico de morte encefálica. Fatores que levam a um aumento do índice de recusa familiar quanto a doação de órgãos.

CNB/GO: Apesar dos avanços na medicina, ainda enfrentamos altos índices de recusa familiar. Quais são, na sua visão, os principais fatores que levam as famílias a recusarem a doação de órgãos?

Juliana de Oliveira: Falta de informação. Falta conhecimento. Um assunto muito pouco falado. Ausência de conversa prévia com o falecido. Quando o potencial doador nunca expressou sua vontade em vida, a decisão recai inteiramente sobre a família, que se vê em um momento de dor tendo que decidir algo complexo. A incerteza leva muitas vezes à negativa.

CNB/GO: Como a AEDO pode ajudar a mudar o cenário da doação de órgãos no Brasil e, em especial, em Goiás?

Juliana de Oliveira: A AEDO (Autorização Eletrônica de Doação de Órgãos) é uma iniciativa recente e promissora que pode ter um papel transformador no cenário da doação de órgãos no Brasil, especialmente em estados como Goiás, onde a recusa familiar ainda é uma barreira importante.

Ela vai fortalecer a vontade do doador em vida.  A simples existência da AEDO já provoca: Discussões em família sobre o tema; Maior visibilidade social da causa; e ainda uma cultura de doação mais ativa, principalmente entre os jovens.

CNB/GO:  A AEDO é um documento que pode ser feito de forma simples e segura nos cartórios de notas. Como a senhora avalia o impacto dessa ferramenta na formalização da vontade do doador e na redução da insegurança jurídica durante o processo de captação?

Juliana de Oliveira: A AEDO não apenas fortalece o desejo do doador como também protege juridicamente todos os envolvidos, reduz a margem de dúvida e pode aumentar significativamente a taxa de doações efetivas. É uma ferramenta simples, acessível e poderosa — especialmente quando aliada à empatia, à informação e ao diálogo com as famílias.

CNB/GO: Os cartórios são reconhecidos por sua atuação jurídica e segura na lavratura de atos de vontade. Na sua visão, como essa estrutura pode ajudar a dar mais credibilidade e força à decisão de quem quer ser doador?

Juliana de Oliveira: A estrutura cartorial tem papel estratégico e simbólico: ao garantir segurança, validade e visibilidade ao desejo do doador, ela amplifica a força ética e jurídica da decisão. O apoio dos cartórios à AEDO não é apenas técnico — é também um gesto de apoio institucional à cultura da doação de órgãos.

CNB/GO: A AEDO permite que o desejo da pessoa de doar seus órgãos seja registrado oficialmente, com validade jurídica. A senhora acredita que esse tipo de instrumento pode ajudar a diminuir os índices de recusa familiar?

Juliana de Oliveira: Sim, acredito que a AEDO pode ser uma ferramenta extremamente eficaz para reduzir os índices de recusa familiar — justamente porque ela atua diretamente no ponto mais crítico do processo: a insegurança da família no momento da decisão.

O registro da vontade de doar órgãos em cartório, por meio da AEDO, é uma das formas mais eficazes de preservar a autonomia do doador e, ao mesmo tempo, facilitar a decisão da família em um momento extremamente delicado.

CNB/GO: Como médica que atua diretamente com pacientes que aguardam por um transplante, o que representa para a senhora saber que há uma ferramenta como a AEDO, que reforça o compromisso do doador e oferece amparo legal à equipe médica?

Juliana de Oliveira: Como médica que convive diariamente com pacientes em lista de espera, a existência da AEDO representa esperança, respaldo e dignidade — tanto para quem aguarda um órgão quanto para quem decide doar.

Me sinto mais confiante e motivada ao saber que, com ela, podemos transformar mais perdas em chances de recomeço.

CNB/GO: Na sua opinião, por que é tão importante que as pessoas expressem, em vida, o desejo de serem doadoras?

Juliana de Oliveira: Na minha opinião, é fundamental que as pessoas expressem, em vida, o desejo de serem doadoras de órgãos porque essa escolha salva vidas — e só pode ser respeitada se for conhecida. E especialmente porque evitará dúvidas e sofrimentos para a família em um momento de tamanha dor. Ao dizer claramente: “Quero ser doador”, a pessoa liberta a família desse peso e transforma a dor em um gesto de amor. Além de garantir que sua vontade seja respeitada. É um ato de autonomia, de responsabilidade e de empatia. É dizer: “Mesmo depois da minha partida, quero continuar fazendo o bem.”

Ajuda a construir uma cultura da doação. Esse tipo de atitude cria uma rede silenciosa de conscientização, que, com o tempo, muda a realidade de um país.

Além de Salvar vidas — literalmente. Uma única pessoa pode beneficiar até 8 pacientes com órgãos e dezenas com tecidos. E nada disso acontece sem um “sim”. Por isso, expressar esse desejo não é apenas importante — é urgente.

CNB/GO: O que a senhora diria para alguém que tem vontade de doar, mas ainda tem dúvidas ou receios sobre o processo?

Juliana de Oliveira: Se eu pudesse conversar diretamente com alguém que tem vontade de doar, mas ainda carrega dúvidas ou receios, eu diria com todo respeito e sinceridade:

“A sua vontade de doar já é, por si só, um gesto de grandeza. Ter dúvidas é natural — e buscar esclarecimento é um sinal de responsabilidade.”

A doação de órgãos é um processo ético, seguro e profundamente humano. Nenhum procedimento acontece sem que haja: Diagnóstico rigoroso de morte encefálica, e lembrando que os critérios brasileiros estão entre os mais rigorosos e seguros do mundo. Ressalto ainda que a família tem o direito de escolher um médico de sua confiança para acompanhar todos os exames e processo de diagnóstico de morte encefálica, caso seja o desejo e desde que não atrase o processo diagnóstico.

CNB/GO: Para finalizar, que mensagem a senhora gostaria de deixar para a população sobre a importância da doação de órgãos e o papel de cada cidadão nessa causa?

Juliana de Oliveira: Falar sobre doação é um ato de amor. Registrar sua vontade é um ato de coragem. E respeitar essa decisão é um ato de humanidade.

Cada um de nós carrega em si um potencial silencioso de ser milagre. Um coração que pode voltar a bater no peito de alguém. Pulmões que podem dar fôlego a quem já não respira. Olhos que podem enxergar de novo. A doação é, talvez, a última forma de amar nesta vida — e a primeira forma de renascer em outra.

Mas isso só acontece quando você escolhe. Quando você conversa. Quando você avisa à sua família: “Sim, eu quero doar!”. Porque doar não é um ato médico. É um ato humano. E o papel de cada cidadão nessa causa é simples, mas profundo: falar sobre isso. Ensinar os filhos. Explicar aos pais. Compartilhar com os amigos. Tornar a doação de órgãos um gesto tão natural quanto dizer “obrigado”.

Então, se posso deixar uma mensagem, é esta: fale agora, para que a vida não se cale depois. Porque, no fim, o corpo descansa. Mas o amor continua salvando.

Por Camila Braunas. Assessora de Comunicação do CNB/GO.

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