Por Bernadete Schleder dos Santos
O casamento por interesse patrimonial é tema recorrente na ficção e um temor constante na vida real. Desde o século XVIII popularizou-se a expressão “golpe do baú”, como a forma de apoderamento das riquezas do parceiro, a partir da união conjugal.
Esse temor era tão significativo, que a própria legislação criou um mecanismo de defesa contra à prática da “caça-fortunas”, onde o imaginário sempre trouxe como protagonista a bela e ambiciosa jovem, tendo o idoso apaixonado e ingênuo como vítima. Nos tempos atuais, os papéis tem sido comumente invertidos, quando a carência emocional das mulheres serve como instrumento de conquista por aproveitadores.
No Brasil, essa proteção remonta ao Código Civil de 1916, o qual impunha a separação de bens ao homem que se casasse com sessenta anos e à mulher cinquentenária. Já o Código Civil de 2002, observando o princípio da igualdade, definiu que essa obrigatoriedade atingiria tanto os homens como as mulheres maiores de sessenta anos. No ano de 2010, a Lei 12.344 aumentou essa faixa etária, passando a proibição de escolha de regime de bens para as pessoas com mais de setenta anos de idade.
Ainda que o progressivo aumento de idade para a restrição legal seja fundamentado no crescente aumento da expectativa de vida, há muito tempo os juristas têm denunciado essa norma como uma forma abusiva de intervenção estatal na autonomia das pessoas, em nome de uma suposta proteção.
Determinar que o septuagenário não mais possa escolher livremente o regime patrimonial, caso opte por casar ou viver em união estável, é restringir sua capacidade civil adquirida aos dezoito anos sem qualquer motivo, a não ser o de já ter vivido mais de sete décadas. É presumir que essas pessoas estariam mais frágeis para constituírem relacionamentos amorosos e que ficariam cegas às intenções de seus parceiros afetivos.
A jurisprudência já vinha atenuando esses efeitos desde o ano de 1964, através de súmula 377 editada pelo STF que instituiu a meação sobre os bens onerosos adquiridos na constância do casamento. No entanto, a regra sucessória de 2002, que permitiu a concorrência do cônjuge ou companheiro na herança dos descendentes, reforçou tal discriminação ao proibir essa concorrência no caso de a união conjugal estar regida pelo regime da separação obrigatória de bens.
Em outubro de 2022, foi divulgado que a controvérsia acerca da constitucionalidade do tema será enfrentada pelo STF, através do recurso extraordinário com agravo (ARE 1309642), que teve repercussão geral reconhecida, mas cujo julgamento ainda não possui data fixada.
No entanto, de forma surpreendente, a 2ª seção do STJ aprovou recentemente a Súmula 655 que determina: “Aplica-se à união estável contraída por septuagenário o regime da separação obrigatória de bens, comunicando-se os adquiridos na constância, quando comprovado o esforço comum”.
Dessa forma os ministros consolidaram o entendimento que já haviam firmado em julgamentos anteriores, ressignificando a antiga Súmula 377/STF, ao complementar sua redação com a exigência da comprovação do esforço comum para a aquisição do patrimônio. Ocorre que a novíssima súmula se refere expressamente à restrição imposta aos septuagenários, contrariando frontalmente amplo entendimento doutrinário a respeito da sua inconstitucionalidade.
É preciso lembrar que a separação obrigatória prevista no artigo 1.641 do CC não se limita apenas à questão da idade, mas também aos casos de suspensão do casamento e aos nubentes que dependem de autorização para casar.
Entre os casos de suspensão, é compreensível a imposição do regime de separação obrigatória para evitar a confusão patrimonial de nubentes divorciados ou viúvos que ainda não procederam a partilha dos bens oriundos da primeira relação.
No caso de tutores e curadores, da mesma forma, eis que existem vulneráveis a serem protegidos, o que pode também ocorrer nos casamentos autorizados. Porém, em relação aos septuagenários, já está mais do que na hora de ser levantada essa restrição, o que foi acenado pelo STF.
Espera-se que haja uma reação contundente por parte dos doutrinadores, antes mesmo do julgamento da questão pela corte suprema. Atenta contra os direitos individuais e limita a autonomia de vontade tanto na questão patrimonial, quanto na liberdade de escolha na forma de entidade familiar. A intervenção estatal exacerbada nas questões de família novamente se faz presente, ofendendo a dignidade humana. É injusto e inaceitável. Não condiz com um tribunal da cidadania.
[1] Advogada especializada em Direito das Familias e Sucessões; professora titular das disciplinas de Direito das Famílias e de Direito das Sucessões da UFN- Santa Maria/RS; articulista do jornal Diário de Santa Maria
Fonte: IBDFAM