– Por Fernanda de Freitas Leitão
É recomendável que como essas hipóteses versam sobre compromisso de compra e venda, seja observado o novo prazo – maior – de 30 dias para purgação da mora, em lugar dos prazos inferiores previstos nas normas legais anteriores.
A nova lei 14.382/22, que dispõe sobre o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos, trouxe-nos uma nova modalidade de resolução das relações contratuais decorrente da falta de pagamento, o cancelamento extrajudicial do registro do compromisso de compra e venda (art. 251-A, da lei 6.015/73), na forma anteriormente previsto na legislação referente aos loteamentos rurais e urbanos (decreto-lei 58/37 e lei 6.766/79).
Com efeito, o supracitado ordenamento legal não apenas simplificou o procedimento de resolução do compromisso de compra e venda por falta de pagamento, mas o tornou indene de dúvida, ao prever a prescindibilidade do ajuizamento de ação resolutória premonitória à reintegração de posse para os contratos que contenham cláusula resolutiva expressa.
Nesse contexto, o intento deste artigo é descortinar as múltiplas modalidades contratuais existentes para viabilizar a venda de um bem imóvel com pagamento em parcelas, as suas principais características, os pontos positivos e negativos, quando há o inadimplemento por falta de pagamento.
Como acima exposto, tanto o decreto-lei 58/37 quanto a lei 6.766/79 preveem e autorizam a possibilidade de cancelamento extrajudicial do compromisso de compra e venda de lotes, sejam eles urbanos ou rurais.
No que tange ao compromisso de venda de fração ideal correspondente à futura unidade imobiliária, o art. 63 da lei 4.591/64 (ao prever notificação para purgação da mora com prazo de dez dias) assenta o procedimento extrajudicial de resolução do contrato, seguido de leilão do imóvel, como forma de recompor o fluxo financeiro do empreendimento, com vistas à preservação do programa contratual, destinando o produto apurado nessa alienação ao pagamento do débito e a entrega de eventual saldo ao adquirente inadimplente.
Caio Mário da Silva Pereira¹ ressaltou a adequação desse procedimento à racionalidade econômica e social da incorporação imobiliária:
“A lei 4.591, de 1964, estabeleceu um procedimento de venda que se realiza sem delongas, e com todas as garantias para o adquirente. Requer a constituição em mora, com prazo de dez dias para a respectiva purgação. A venda se efetua em leilão público. (… ). O leilão oferece, portanto, o mais equânime dos critérios: presteza na solução, reversão ao condomínio do preço apurado com as deduções previstas; entrega do saldo ao adquirente faltoso. Ninguém se apropria do remanescente ou de qualquer diferença na apuração de haveres. Efetuado o leilão com observância das normas contidas no art. 63 e seus parágrafos, não se pode nele enxergar enriquecimento sem causa (quer para o incorporador, quer para o condomínio) ou condição abusiva. Em confronto com o CDC, que é tão zeloso da defesa do consumidor, não se vislumbra aí qualquer das práticas abusivas mencionadas no art. 39 do CDC.”
Nessa hipótese, a notificação do devedor é primordial, não apenas para a sua constituição em mora, mas para garantir o exercício do contraditório, viabilizando a impugnação total ou parcial do débito que lhe é imputado. Confira-se o entendimento do STJ sobre o tema, in verbis:
“Leilão Extrajudicial. Art. 63, §1º da lei 4.591/64. Intimação para comunicação da data e hora do leilão. Desnecessidade. […] 4. A necessidade de previsão contratual da medida expropriatória extrajudicial, e a ocorrência de prévia interpelação do devedor para que seja constituído em mora, dão a essa espécie de execução elementos satisfatórios de contraditório, uma vez que a interpelação será absolutamente capaz de informar o devedor da inauguração do procedimento, possibilitando, concomitantemente, sua reação.” (Resp. 1399024/RJ, Relator Ministro Luís Felipe Salomão, DJe. 11/12/15).
Importante lembrar que, para a configuração do inadimplemento absoluto, o supracitado art. 63 da Lei de Incorporação Imobiliária exige a falta de pagamento de, pelo menos, três prestações do preço da construção por parte do adquirente ou contratante.
Da mesma forma, nos casos de compra e venda de imóvel com alienação fiduciária em garantia, os arts. 26 e 27 da lei 9.514/97 (Sistema Financeiro Imobiliário) preveem a execução extrajudicial da garantia e estabelecem os procedimentos de cobrança e leilão do bem objeto do contrato.
O procedimento tem início com a intimação do devedor para a purga da mora, com o prazo de 15 dias, após o cumprimento da carência prevista no contrato.
A intimação do fiduciante será pessoal e pode ser promovida, por solicitação do oficial do Registro de Imóveis, por oficial de Registro de Títulos e Documentos da comarca da situação do imóvel ou do domicílio de quem deva recebê-la, ou pelo correio, com aviso de recebimento (§3º, do art. 26, da lei 9.514/97), e o seu descumprimento gera a nulidade do procedimento, traduzindo-se em condição essencial, sendo ressalvada a hipótese legal de intimação por edital, desde que o devedor se encontre em local incerto e não sabido.
Com a consolidação da propriedade do credor, o bem será posto à venda mediante leilão, que deverá ser realizado no prazo de 30 dias, sendo que o primeiro leilão se dará levando-se em conta, como preço mínimo, aquele constante do contrato.
Frustrado esse primeiro leilão, será realizado um segundo, em que será aceito o maior lance oferecido, desde que igual ou superior ao valor da dívida, acrescido das despesas, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, tributos e das contribuições condominiais, entendendo-se dívida como o saldo devedor da operação de alienação fiduciária, na data do leilão, nele incluídos os juros convencionais, as penalidades e os demais encargos contratuais e, como despesas, a soma das importâncias correspondentes aos encargos e às custas de intimação e as necessárias à realização do leilão público, nestas compreendidas as relativas aos anúncios e à comissão do leiloeiro (§§ 2º e 3º, do art. 27 da lei 9.514/97).
Realizado o leilão, exonera-se o devedor pelo saldo remanescente, sendo assegurado ao fiduciário e seus sucessores, inclusive ao adquirente do imóvel, promover a reintegração de posse que será concedida em caráter liminar para desocupação em 60 dias, desde que haja a comprovação da propriedade em nome daquele.
Insta ressaltar que todo esse procedimento se faz necessário, à medida que o art. 1.365 do Código Civil veda a possibilidade de o credor ficar com o bem objeto da garantia, no caso de inadimplemento, e fulmina de nulidade eventual cláusula contratual nesse sentido. Então, vejamos:
“Art. 1.365. É nula a cláusula que autoriza o proprietário fiduciário a ficar com a coisa alienada em garantia, se a dívida não for paga no vencimento.”
Com a vedação ao pacto comissório, evita-se que o credor obtenha a propriedade de bem cujo valor é notavelmente superior ao valor nominal do crédito, em prejuízo do devedor, que teria o seu patrimônio diminuído, e dos demais credores (titulares de créditos privilegiados e credores quirografários, estes últimos subordinados em relação ao titular de garantia real).
Outrossim, considerando-se que uma das finalidades da vedação ao pacto comissório é preservar o princípio da par conditio creditorum, se não há garantia real, não há, evidentemente, violação à igualdade entre credores.
A vedação ao pacto comissório, contudo, não fulmina de nulidade toda e qualquer forma de apropriação do objeto da garantia pelo credor; impede, apenas, que essa apropriação se dê pelo valor da dívida, a fim de proteger o próprio credor, bem como preservar o princípio da igualdade entre credores.
Nesse exato sentido, cabe pontuar que, no procedimento de execução extrajudicial da garantia fiduciária, o §5º, do art. 27 da lei 9.514/97 autoriza que o imóvel reverta em definitivo para o credor fiduciário, nos casos em que, a despeito da realização de dois leilões, não se tenha obtido lance algum de valor igual ou superior ao montante da dívida, das despesas, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais. Nessa hipótese, não havendo lance suficiente no segundo leilão, a consolidação da propriedade em favor do credor fiduciário se torna definitiva, e a dívida se extingue, ficando o credor desobrigado de restituir qualquer importância ao devedor.
Nesse caso específico, portanto, o credor, além de permanecer com parcelas de preço que tiverem sido pagas antes do início do inadimplemento, adquire a propriedade definitiva da coisa alienada em garantia, o que representa clara exceção à regra do art. 1.365 do Código Civil. Essa exceção, porém, decorre do pouco interesse do mercado pelo imóvel dado em garantia, considerada a realização de dois leilões não suficientes para assegurar ao credor o valor da dívida. Assim, a exceção que permite ao credor remanescer com o imóvel tem por clara finalidade evitar que ele acabe por receber menos do que o valor da dívida.
Constata-se, assim, que o que é reprovável pelo ordenamento jurídico não é a simples apropriação direta e permanente do bem como mecanismo de satisfação do crédito, mas a forma pela qual seu valor é fixado para efeito da apropriação.
Nesse sentido, já tem sido admitido pela nossa jurisprudência o pacto marciano (VII Jornada de Direito Civil, Enunciado 626), possibilitando, por meio de um ajuste, que o bem dado em garantia ao credor seja por ele apropriado, exigindo para tanto a avaliação do justo preço e a devolução de eventual excedente da dívida ao devedor.
Discorrendo ainda sobre a possibilidade da venda de um bem imóvel com recebimento do preço ajustado em parcelas e o seu inadimplemento, por falta de pagamento, temos a possibilidade de aplicação das regras previstas pelo Sistema Financeiro de Habitação (lei 4.380/64 e art. 29, do decreto-lei 70/66). Nesse caso, o imóvel será hipotecado. E o procedimento para a execução da hipoteca é regulamentado tanto pela lei geral (Código de Processo Civil), que remete à execução judicial do crédito hipotecário, quanto por leis especiais (por exemplo, lei 5.741/71).
Nesta última hipótese, o art. 1º da lei 5.741/71 prevê procedimento extrajudicial, em que o credor, para buscar a satisfação do direito, não precisa propor uma ação judicial, mas, apenas, atender aos requisitos da legislação especial (arts. 31 e 32 do decreto-lei 70/66, prazo de 20 dias, §1º, do art. 31, para a purgação da mora).
Mencione-se, igualmente, por oportuno, a possibilidade de se vender um imóvel com pagamento em parcelas, por meio de um contrato de compra e venda com a cláusula resolutiva expressa, nos termos dos arts. 481 c/c art. 474, da lei substantiva. Trata-se, por conseguinte, de uma compra e venda sob condição (29, I, do art. 167, da lei 6.015/73), sendo assim, uma propriedade resolúvel (vide art. 1.359, do Código Civil brasileiro).
Ao se admitir que a cláusula resolutiva expressa seja manejada no caso de inadimplemento do comprador em pagar o preço, o vendedor poderia, sem necessidade de ingressar com uma ação de resolução, propor ação de reintegração de posse contra o comprador inadimplente que estivesse na posse do imóvel.
Do contrário, negando-se a eficácia da cláusula resolutiva expressa, o vendedor deveria primeiramente propor ação de resolução para, após a prolação de sentença desconstitutiva da relação jurídica, propor a ação de reintegração de posse contra o comprador.
Sob o ponto de vista prático, a compra e venda com a cláusula resolutiva expressa muito se assemelha ao compromisso de compra e venda com a mesma cláusula, ou seja, a venda de um imóvel com pagamento em parcelas, o inadimplemento do comprador/compromissário comprador e a consequente resolução do contrato, por força da cláusula resolutiva, sem a necessidade da prévia ação judicial para configurar a resolução do negócio jurídico.
Surge, então, a seguinte questão: a possibilidade do cancelamento do registro extrajudicial constante do novel art. 251-A, da Lei de Registros Públicos, com a alteração dada pela lei 14.382/22, para a hipótese de inadimplemento do compromissário comprador por falta de pagamento, seria extensiva à compra e venda com a previsão da cláusula resolutiva expressa?
Ao que nos parece essa possibilidade de cancelamento extrajudicial do registro do compromisso de compra e venda não seria extensível para os contratos de compra e venda, mesmo com a inserção de cláusula resolutiva expressa, pelas razões que se seguem: (i) o nosso ordenamento jurídico, ao permitir o cancelamento extrajudicial para os imóveis loteados rural e urbano, fê-lo de forma expressa; (ii) a nova lei 14.382, que modificou a Lei de Registros Públicos e criou o art. 251-A, ao prever o procedimento extrajudicial para cancelamento do registro imobiliário, foi taxativa ao se referir tão somente ao compromisso de compra e venda.
Assim, entendemos que, tratando-se de contratos de compra e venda, e não de simples compromissos, impossível a aplicação do procedimento extrajudicial do art. 251-A da Lei de Registros Públicos, ainda que o contrato celebrado ostente cláusula resolutiva expressa.
É forçoso reconhecer que a possibilidade de cancelamento extrajudicial do registro imobiliário, mediante reconhecimento do débito e do descumprimento contratual pelo próprio registrador, é hipótese de exceção em nosso ordenamento jurídico, e, nesse contexto, a norma permissiva introduzida no art. 251-A da lei 6.015/73 não admite interpretação extensiva, tratando-se de regra específica para a desconstituição de compromissos de compra e venda.
Para remate, em relação à resolução do contrato de consórcio para a aquisição de imóvel, cabe observar que a lei 11.795/08, que regula a matéria, não impôs a observância de qualquer formalidade ou procedimento prévio, como a notificação do consorciado inadimplente, para constituí-lo em mora, deixando a cargo do contrato a ser firmado pelas partes essa incumbência.
Nessa matéria, entendemos que não há qualquer espaço para a aplicação subsidiária da nova lei 14.382/22, visto que nos contratos de consórcio também não se está diante de compromisso de compra e venda. Os registros imobiliários, em matéria de consórcio, são de compra e venda e de garantia (hipoteca ou alienação fiduciária), e ainda a averbação da afetação a que se refere o §7º, do art. 5º da lei 11.795/08.
Quanto aos prazos para purgação da mora, entendemos que deverão continuar a ser observados os previstos nas leis especiais. A título de exemplo, a execução extrajudicial da garantia fiduciária, prevista na lei 9.514/97, não se confunde em nada com o cancelamento extrajudicial do compromisso de compra e venda, agora regulado pelo art. 251-A da Lei de Registros Públicos. Assim, cada procedimento manterá os seus prazos próprios.
Nas hipóteses regidas pelo art. 251-A da lei 6.015/73, o prazo do devedor para purgar a mora é de 30 dias, contados da notificação feita pelo oficial do Registro de Imóveis ou pelo oficial do Registro de Títulos e Documentos (§2º, do art. 251-A).
Embora nosso entendimento seja no sentido de que esse novo prazo não modifica a legislação especial, é recomendável, especificamente nos casos de cancelamento de compromissos de compra e venda, que – a despeito dos diferentes prazos estampados no decreto-lei 58/37, e na lei 6.766/79 (para as hipóteses de loteamento) e no art. 63 da lei 4.591/64 (para a promessa de compra e venda de fração ideal correspondente à futura unidade imobiliária na construção em condomínio) -, como essas hipóteses versam sobre compromisso de compra e venda, seja observado, ad cautelam, o novo prazo – maior – de 30 dias para purgação da mora, em lugar dos prazos inferiores previstos nas normas legais anteriores. Isso, exatamente, com a finalidade de evitar que posteriormente se venha a alegar a nulidade dos procedimentos adotados pelo credor.
Afinal, ainda não se sabe como a jurisprudência se comportará em face do advento do novel art. 251-A acrescentado à Lei de Registros Públicos. Existe, portanto, a possibilidade, ao menos teórica, de que se venha a entender que o novo prazo de 30 dias se aplica extensivamente a toda e qualquer purgação de mora em matéria de compromisso de compra e venda. Ainda que, a rigor técnico, a lei geral mais recente não deva prevalecer sobre a lei especial mais antiga, a prudência e a segurança recomendam atitude de cautela por parte dos operadores do Direito, e a observância, ainda que por liberalidade, do prazo maior de 30 (trinta) dias terá o condão de prevenir eventuais alegações de nulidade.
Concluindo, a nova lei 14.382/22, no que concerne à possibilidade do cancelamento extrajudicial do registro de compromisso de compra e venda, sem dúvida, converge com um dos princípios norteadores do nosso Código Civil, constante na sua Exposição de Motivos, elaborada por Miguel Reale, i.e., princípio da operabilidade, que, em apertada síntese, significa que o Direito deve existir a fim de que produza efeitos, proporcionando uma alteração no plano social.
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1 Revista dos Tribunais, v. 712, p. 107.
Fernanda de Freitas Leitão é tabeliã do 15º Ofício de Notas do Rio de Janeiro.
Fonte: Migalhas