Para representantes de municípios brasileiros, uma decisão equivocada do Plenário do Supremo Tribunal Federal levou à fixação de tese sobre o momento do fato gerador do Imposto sobre Transmissão inter vivos de Bens Imóveis (ITBI).
Em 2021, o ministro Luiz Fux, presidente do Supremo, levou para análise da corte a possibilidade de repercussão geral de um recurso que tratava sobre a incidência do ITBI em cessão de direitos de compra e venda, mesmo sem a transferência de propriedade pelo registro imobiliário.
A conclusão apresentada pelo relator aos colegas foi de que o tema possuía densidade constitucional e potencial impacto em outros casos. E foi além: no mesmo acórdão, afirmou que o STF já tinha, inclusive, jurisprudência dominante sobre o tema. Com isso, propôs de pronto uma solução para a questão.
Assim, sem manifestação das partes sobre o mérito, nem sustentação oral, o Plenário Virtual do STF fixou a tese segundo a qual “o fato gerador do Imposto sobre Transmissão inter vivos de Bens Imóveis (ITBI) somente ocorre com a efetiva transferência da propriedade imobiliária, que se dá mediante o registro” (clique aqui para ler o acórdão).
Esse tipo de decisão acelerada é, de fato, uma possibilidade no STF. Foi criado há 15 anos, quando a corte implantou o regime da repercussão geral. Até então, não havia decisões com efeitos erga omnes (para todos) e tudo se decidia em cada caso concreto. Para não precisar rejulgar todos os temas, o Supremo entendeu que poderia simplesmente reafirmar jurisprudência e fixar tese, desde que ela fosse dominante.
O problema, segundo os representantes dos municípios, é que esse não é o caso da questão sobre o ITBI. Uma vez reconhecida a repercussão geral, o presidente do STF deveria ter distribuído o recurso. Isso permitiria audiência das partes com os ministros, ingresso de amici curiae (amigos da corte), sustentação oral e a efetiva discussão da matéria.
Qual jurisprudência?
A tese foi fixada na análise de um recurso extraordinário ajuizado pelo município de São Paulo, que tratava de uma das três hipóteses de cobrança do ITBI previstas na Constituição: a cessão de direitos pessoais à aquisição dos bens imóveis.
A jurisprudência dominante apontada pelo ministro Fux para antecipar a fixação da tese, no entanto, trata especificamente de outra hipótese de cobrança do ITBI: a celebração de promessas de compra e venda.
A Procuradoria-Geral do município de São Paulo, que ajuizou o recurso extraordinário, levantou o equívoco em embargos de declaração. O órgão destacou que o STF não possui precedentes de mérito especificamente sobre cessão de direitos à aquisição de imóveis.
A omissão foi rejeitada no julgamento dos embargos, em fevereiro deste ano, mas por maioria apertada. Os ministros Dias Toffoli, Alexandre de Moraes, André Mendonça, Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes votaram por anular a reafirmação da jurisprudência e permitir o regular trâmite do recurso. Ficaram vencidos (clique aqui para ler o acórdão).
O voto divergente do ministro Toffoli destacou que apenas em julgados anteriores à Constituição Federal de 1988 o Supremo chegou a analisar a incidência do ITBI sobre a cessão de direitos à aquisição de imóveis. Sob a Constituição de 1946, esse tributo, que hoje é de competência dos municípios, era cobrado pelos estados.
Como a omissão persistiu, o município de São Paulo embargou mais uma vez o acórdão. Na petição, afirmou que o acórdão ignorou que o fato gerador do ITBI também ocorre com a cessão de direitos à sua aquisição, sendo perfeitamente legítima a cobrança, ainda que no momento do registro.
Assim, manter a tese como está será o mesmo que riscar da Constituição a parte final do artigo 156, inciso II — exatamente a que prevê cobrança de ITBI por cessão de direitos à sua aquisição.
As consequências, segundo a Procuradoria, são a abertura à elisão tributária e o incentivo à celebração de sucessivas transações não levadas a registro. Além disso, vai prejudicar a credibilidade dos cadastros públicos relativos a imóveis, que influenciam outras operações como a cobrança do IPTU.
Fake precedents
O equívoco foi também devidamente apontado pela Associação Brasileira das Secretarias de Finanças das Capitais Brasileiras (Abrasf), entidade que não pôde se manifestar sobre o caso justamente porque o mérito do recurso foi decidido junto com o reconhecimento da repercussão geral.
Nos embargos de declaração, a entidade pediu seu ingresso como amicus curiae (amiga da corte) por entender que não há jurisprudência dominante para reafirmação. O pedido foi negado pelo ministro Fux porque, concluído o julgamento e firmada a tese, a participação da Abrasf não causaria prejuízo ou acréscimo, segundo ele.
Assessor jurídico da entidade, Ricardo Almeida Ribeiro da Silva afirma que, nos primeiros embargos de declaração, o STF “quase entendeu” a questão. E vê as chances de cancelamento da tese nos segundos embargos como “muito pertinentes”.
Em artigo publicado na edição de junho da Revista Trimestral do Projeto de Jurisprudência Tributária, ele argumentou que a jurisprudência do STF proibiu a incidência do ITBI apenas sobre a promessa de compra e venda, enquanto mero contrato preliminar — admitindo, portanto, na celebração das escrituras definitivas (clique aqui para ler).
E explicou como a fixação da tese partiu de acórdãos antigos do STF — o último deles de 1983 — que mantiveram acórdãos do Superior Tribunal de Justiça sobre a cobrança de ITBI na escritura definitiva de compra e venda, mas sem analisar o tema sob o viés constitucional.
Após a Constituição de 1988, esses precedentes foram invocados em novas decisões pontuais, induzindo à ideia de que o tema foi enfrentado no mérito. E, assim, formou-se a jurisprudência reafirmada pelo STF sob a repercussão geral, em 2021.
“Não havia jurisprudência a ser reafirmada. Existiam acórdãos das turmas do STF que repetiam decisões anteriores que não tratavam do tema no mérito”, explicou ele. “É assim que se forma precedente no Brasil. Com base em fake precedents”, criticou.
No julgamento virtual de 2021, nem todos acompanharam a proposta do ministro Fux. O ministro Gilmar Mendes não se manifestou. E apenas o ministro Marco Aurélio divergiu. Ele entendeu que não caberia o julgamento imediato do tema.
“A matéria deve ser analisada em momento posterior, aberta oportunidade à sustentação oral, observando-se o devido processo legal”, disse o então decano do STF, hoje aposentado. Os segundos embargos de declaração estão conclusos à presidência desde março de 2022 e ainda não têm data para julgamento.
ARE 1.294.969
Fonte: ConJur