Por Sérgio Jacomino
Nesta seção oficinal do Migalhas Notarias e Registrais, trago à consideração dos nossos leitores um caso muito interessante de curioso monumento paleográfico de extração notarial.
Grosso modo, a palavra paleografia se origina de paleo (antigo) + grafia (escrito) e significa simplesmente “qualquer forma antiga de escrita, tanto em documentos como em inscrições”, como registra Houaiss.
Os antigos protocolos notariais eram lavrados a mão. Os tabeliães e seus escreventes manuscreviam os atos com canetas-tinteiro numa cifra que hoje nos parece tão longínqua quanto os escritos notariais medievais. São escritos vazados numa caligrafia que se diversificou ao longo dos séculos, não raro com adendos, interpolações, coisas que ocorriam naturalmente numa época em que as retificações de meros erros representavam um problema técnico de difícil solução.
Eis que nos foi apresentada a registro certidão extraída, em forma reprográfica, diretamente do protocolo notarial manuscrito. O título foi recepcionado e protocolado na Serventia e a pretensão foi obstada pelo seguinte:
Escritura de compra e venda ilegível. Prejudicado o exame do título. Necessária a apresentação da escritura lavrada em 1949, pelo Tabelião de Notas desta Capital, […] em forma legível e integral, sem emendas ou rasuras, em atendimento ao princípio da segurança jurídica e eficácia dos atos registrais (art. 1º da lei 8.935/94).
O interessado pugnou pelo registro aduzindo as razões que se acham expressas nos autos.
Observações preliminares
O título achava-se protocolado e a prenotação em vigor. Embora o título estivesse prenotado, o seu conteúdo não fora apreciado, de modo que a sua registrabilidade se achava pendente de qualificação.
Nos cingimos, então, a responder à provocação do interessado. E elas foram formuladas por ele alternativamente:
a) Determinação para que o Notário que expeça certidão da escritura “de forma legível, constando todos os dados da escritura manuscrita, no prazo máximo de 5 (cinco) dias”.
b) Não entendendo o Juízo cabível o requerimento da alínea “a”, o interessado “requer desde já Ofício ao 5° Registro de Imóveis para que seja realizado a regularização com a documentação pertinente e já entregue em respeito ao princípio da continuidade registrária” […] devido a não disponibilização da escritura pelo 08 Registro de Notas”.
A questão foi posto sob a apreciação de duas corregedorias permanentes – a dos ofícios de notas (ilustre 2ª Vara de Registros Públicos) e a dos ofícios registrais (respeitável 1ª Vara de Registros Públicos.
Traslado, certidão e a moderna reprografia
Traslado é o instrumento mais comum e tradicional que os Registros Imobiliários recebem diuturnamente. É o “duplo do que o oficial pôs nas suas notas: passa-se para outro papel, traslada-se, aquilo a que se deu forma pública”, segundo Pontes de Miranda1.
Já certidão é uma declaração do notário, dotada de fé pública, de que enuncia o que consta de suas notas. O mesmo Pontes de Miranda fará a distinção:
“Enquanto o traslado é cópia e tem a eficácia de cópia, de duplo, a certidão é declaração do oficial público de que o que ele enuncia, ou transcreve, consta das suas notas, ou dos autos. A responsabilidade do oficial público, no traslado, é a de quem afirma a fidelidade da cópia; na certidão, é a de quem empenha a afirmação de fidelidade do que reproduz, pela certeza que assegura. O conteúdo do traslado é o que foi copiado: o conteúdo da certidão é o fato que se certifica. Se o oficial público certifica de inteiro teor, traslada, mas acrescenta que certifica; se o oficial público somente traslada, apenas afirma a fidelidade da cópia. Se ao oficial público se pede o traslado da escritura, não mais pode fazer que copiá-la, duplicá-la; se ao oficial público se pede a certidão sem ser de inteiro teor, o oficial público apenas diz que aquilo de que se trata consta, ou não consta, ou que ocorreu, ou não ocorreu”.
Tradicionalmente, as certidões dos livros notariais resumiam-se a dois tipos: integrais, isto é transcrição verbo ad verbum do ato notarial lavrado nas notas, e parcial, positiva ou negativa, relativas a destaques rogados pelo interessado[2].
Com o advento de novas tecnologias reprográficas, as certidões em forma reprográfica ganharam destaque. O decreto-lei 2.148/40 previu:
“Art. 2º As certidões de inteiro teor, bem como as públicas-formas de qualquer natureza podem ser extraídas por meio de reprodução fotostática, devendo as cópias conter, para possuírem valor probante em juízo ou fora dele, a autenticação da autoridade competente, que certificará, em declaração expressa, se acharem iguais ao original”.
Embora o referido decreto-lei dispusesse de forma ampla acerca da utilização da certidão reprográfica, emprestando-lhe o mesmo valor probante em juízo ou fora dele, a sua aceitação foi posta em questão. GILBERTO VALENTE DA SILVA, em decisão proferida ainda quando se achava à frente da 1ª vara de Registros Públicos de São Paulo, decidiu que a certidão em forma reprográfica “não poderia ser aceita, porque a lei de registros públicos, que lhe é posterior, não contempla cópia reprográfica como título hábil a ser registrado”3. De fato, o inc. I do art. 221 da LRP prevê unicamente o registro de “escrituras públicas, inclusive as lavradas em consulados brasileiros”.
Entretanto, Afrânio de Carvalho já propunha, nos alvores da nova lei, exegese ampliativa do dispositivo legal contido na LRP vigente. Diz que são admitidas as escrituras públicas, “lavradas em livros de tabeliães e transladadas ou certificadas em avulso para o fim do registro”4.
A doutrina foi recolhida pela Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo que disciplinou a matéria no processo CG 17.848/96. Aprovando excelente parecer do magistrado Francisco Eduardo Loureiro, fixou o entendimento de que se admite “a expedição de certidões pelo meio reprográfico que abrange a fotocópia, a xerocópia, a microfilmagem e a computação, entre outros”5.
Atualmente, as certidões podem ser expedidas em vários modos – inclusive “sob a forma de documento eletrônico, em PDF/A, ou como informação estruturada em XML (eXtensible Markup Language), assinados com Certificado Digital ICP-Brasil” (NSCGJSP item 198 do CAP. XVI).
As mesmas NSCGJSP assim dispõe sobre o tema:
148. Os traslados e certidões serão impressos em papel de segurança, facultada a reprodução por mecanismos que não dificultem a visualização e a leitura do documento.
148.1. A certidão será lavrada em inteiro teor, em resumo, ou em relatório, conforme quesitos, e devidamente autenticada pelo Tabelião de Notas ou seu substituto legal.
A faculdade de se expedir certidões utilizando-se de instrumentos tecnológicos “que não dificultem a visualização e a leitura do documento”, será comentada logo abaixo.
Atos notariais manuscritos
O caso enfrentado apresentava um certo grau de dificuldade.
Tratava-se de ato notarial lavrado no longínquo ano de 1949 de forma manuscrita. Há um elevado grau de dificuldade para a leitura e perfeita compreensão do inteiro teor da peça apresentada ao Registro.
É preciso treino e perícia na interpretação segura de peças tabeliônicas paleográficas. Não é razoável que se expeça uma certidão que representa grau elevado de dificuldade de legibilidade e interpretação para qualquer interessado. Antes de servir ao Registro de Imóveis, a certidão deve servir aos próprios interessados.
O registro de imóveis igualmente mantém livros manuscritos e muitos deles revelam atos que ainda produzem efeitos jurídicos, relativos a imóveis que ainda não realizaram o début no sistema da matrícula da Lei 6.015/1973. E nem por isso os registradores expedem cópias reprográficas de seus livros, mas produzem certidões das transcrições e inscrições, poupando aos interessados e destinatários da publicidade registral o árduo trabalho interpretativo.
As certidões devem revelar clareza e segurança. Vicente de Abreu Amadei, em precedente da CGJSP, já deixava claro que “somente se pode admitir a forma reprográfica da certidão, quando for possível observar os pressupostos da clareza da redação escrita e da segurança jurídica, que informam o direito registral”6.
É certo que tratava de certidões de registro de imóveis, mas a advertência é procedente.
Conclusão
O tabelião tem em mãos a fonte primária da informação. Acha-se à sua disposição o próprio livro de notas, fonte original de onde se deve extrair a certidão. Com o livro diante de si, pode cotejar, apreciar as entrelinhas (que as há naquele ato notarial), decifrar as passagens mais obscuras e difíceis. Pode até mesmo utilizar como guia o traslado que o próprio interessado disponibilizou e que se achava acostado nos autos.
Aliás, a forma de expedição da certidão, como se sugeriu, era justamente a prática adotada por aquele mesmo tabelionato. Podia-se contemplar às fls. dos autos uma certidão extraída do mesmo livro – X, fls. Y – relativa ao mesmo ato notarial que os interessados agora pretendiam, passados 73 anos da sua celebração, apresentar a registro.
A expedição de certidão clara e segura representa um múnus de todo aquele que lida com fontes de informação vazada em formas diversificadas de grafia e expressão.
Colocamo-nos à disposição dos interessados para tentar interpretar a peça, cientes de que será uma espécie de “certidão de certidão”, como referiu PONTES DE MIRANDA (loc. cit.), com eventual risco no processo de transliteração.
Addendum
Às fls. 49/97 a parte interessada, em breve síntese, informou ao Juízo que apresentou a escritura ao 5º RI, e que, em virtude da demora da entrega da certidão do traslado pelo 9º Tabelionato de Notas, as certidões de propriedade das circunscrições anteriores acabaram vencendo o prazo de validade, ocasionando-lhe prejuízos.
Por essa razão, requereram que se determinasse ao Registro que aceitasse as certidões emitidas e já entregues anteriormente.
Andamento do título
É preciso remontar o andamento do título no cartório para compreender o processo:
1) Prenotação X de 21/2/22. Examinado, o título foi posto em exigência em virtude de sua ilegibilidade (fls. 69). Status: Prenotação cancelada em virtude de não cumprimento das exigências.
2) Prenotação Y de 6/4/22. O prazo de vencimento foi tornado indeterminado em razão do pedido de providências. Em data de 26/5/22, nos seria entregue, pessoalmente, a certidão do traslado da escritura – informação prestada nos autos. Status: Em vigor.
Nas duas ocasiões em que o título foi apresentado a registro, as certidões e demais documentos juntados aos autos não foram apresentados. Portanto, até aquele presente momento o título não fora formalmente examinado. Calham, entretanto, algumas observações.
Certidões acostadas nos autos – fls. 59/62
Compulsando o processo, vê-se às fls. 60 a certidão da Transcrição X, de 19/11/1909, expedida em 15/2/12 pelo 1º RI, de propriedade de JOF, domiciliado nesta capital, proprietário. Às fls. 59, 61 e 62 referem-se às certidões negativas das demais circunscrições.
Rezam as NSCGJSP no item 54, Capítulo XX:
54. A matrícula será aberta com os elementos constantes do título apresentado e do registro anterior. Se este tiver sido efetuado em outra circunscrição, deverá ser apresentada certidão expedida há no máximo 30 (trinta) dias pelo respectivo cartório, a qual ficará arquivada, de forma a permitir fácil localização.
Esta é a razão pela qual a atualização das certidões é exigida.
Qualificação em estado de suspensão
O título foi apresentado sem as certidões e demais documentos acostados às fls. dos autos – especialmente documentos pessoais e da administração pública municipal. Os documentos (ou parte deles) foram apresentados perante o Juízo – possivelmente em atenção às exigências de fls. 67-68 dos autos.
Tão logo apresentada a certidão extraída das Notas, o cartório entrou em contato telefônico com os interessados, solicitando fossem apresentadas as ditas certidões atualizadas e demais documentos atualizados e autenticados para que o título fosse afinal examinado.
Todavia os interessados postularam diretamente perante o Juízo a dispensa (fls. 49-50), in verbis:
“Dessa maneira, requer que o 5ª tabelião de notas dessa Capital [SIC] aceite as certidões emitidas e já entregues anteriormente para o regular andamento das averbações na matricula do imóvel”.
Entretanto, os títulos e documentos acessórios devem ser apresentados ao registrador, a quem incumbe, originariamente, qualificar e imperar o registro – ou a sua denegação. Somente a partir daí se pode impugnar legitimamente as razões de eventual denegação de registro, deduzindo sua pretensão perante o R. Juízo competente, nos termos do art. 198 da LRP.
Não tendo sido apresentadas as certidões, acompanhadas dos documentos anexados aos autos, a qualificação ainda se acha na dependência de tais providências – fato já informado a Vossa Excelência na manifestação de fls. 45.
Para não deixar passar a oportunidade, consigno que já se vislumbram alguns problemas. Na transcrição X do 1º RISP (fls. 60), por exemplo, a qualificação do proprietário se revela muito precária, o nome é muito comum. Será necessário investigar (e comprovar) tratar-se da mesma pessoa que comparece na escritura doando o imóvel (fls. 51/58). Afinal, o título dormitou nas gavetas do interessado por longos 70 anos.
Seja como for, superada a questão central – apresentação do título de forma legível – aguardamos a apresentação dos documentos acessórios para a submissão do título ao processo de exame e cálculo, nos termos do art. 12 da LRP.
Conclusão
O pedido de providências foi julgado improcedente. As razões podem ser apreciadas na r. decisão da 1ª Vara de Registros Públicos da Capital de São Paulo:
RECLAMAÇÃO – QUALIFICAÇÃO REGISTRAL. NOTA DEVOLUTIVA – EXIGÊNCIAS. TÍTULO MANUSCRITO – ILEGIBILIDADE. CERTIDÃO – PRAZO DE VALIDADE. TRASLADO. CERTIDÃO. CÓPIA REPROGRÁFICA. PP 0018212-94.2022.8.26.0100, São Paulo, j. 18/7/2022, Dje 20/7/2022, Dra. Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad. Acesso aqui.
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1 PONTES DE MIRANDA. Tratado. São Paulo: RT, 1983, T. III, p.429-430, § 350.
2 RIBEIRO. Zeferino. I Tabelionato. 2ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1955, p. 22. VASCONCELOS. Julenildo Nunes. XRUZ. Antônio Augusto Rodrigues. Direito Notarial – teoria e prática. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2000, p. 70, n. 4.
3 Processo 54/1979, j. 28/11/1979, Dr. Gilberto Valente da Silva. Disponível aqui.
4 CARVALHO. Afrânio. Registro de Imóveis, 3ª ed. Forense: Rio de Janeiro, 1982, p. 278-9.
5 Processo CG 17.848/1996, São Bernardo do Campo, decisão de 6/2/1997, DJ 14/2/97, Des. Márcio Martins Bonilha. Disponível aqui.
6 Processo CGF 23/1992, Novo Horizonte parecer de 6/2/1992, Dr. Vicente de Abreu Amadei. Disponível aqui.
Sérgio Jacomino: Quinto Oficial de Registro de Imóveis da Capital de São Paulo. Presidente do NEAR – Núcleo de Estudos Avançados do SREI. Ex-presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR – Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra.
Fonte: Migalhas