Nos últimos dias 19 e 20 de maio de 2022, ocorreu em Brasília a IX Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, vinculado ao Superior Tribunal de Justiça. Como tenho destacado em vários escritos, trata-se do evento mais importante do Direito Civil Brasileiro, com a aprovação de enunciados doutrinários que têm sido muito utilizados por julgadores de todo o País.
As Jornadas de Direito Civil representam hoje a principal ponte de diálogo entre a doutrina e a jurisprudência, muitas vezes antecipando tendências que se concretizam anos depois, na prática do Direito Privado Nacional. A iniciativa de sua criação foi do saudoso Ministro Ruy Rosado de Aguiar Jr., que sempre deve ser homenageado, como professor, autor de obras de relevo e grande magistrado.
Essa foi a maior de todas as Jornadas do Conselho da Justiça Federal, tendo sido enviadas mais de novecentas propostas e aprovados quarenta e nove enunciados. Dela participaram ministros do Superior Tribunal de Justiça, desembargadores, juízes, promotores de Justiça, procuradores, advogados, professores de todo o País e estudantes, em sete comissões: Parte Geral e LINDB, Obrigações, Contratos, Responsabilidade Civil, Direito das Coisas e Propriedade Intelectual, Família e Sucessões, Direito Digital e Novos Direitos. Foram comemorados os vinte anos do Código Civil e da criação da própria Jornada. Foi também um momento muito especial, pois a IX Jornada foi o primeiro grande evento jurídico depois de dois anos de dura pandemia. Muitos dos seus participantes não se encontravam pessoalmente desde 2019 ou desde o início de 2020.
A coordenação geral foi do Ministro Jorge Mussi, Vice-Presidente do Superior Tribunal de Justiça e Diretor do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal. A coordenação científica coube aos Ministros Luis Felipe Salomão, Paulo de Tarso Sanseverino e Marco Aurélio Bellizze, das Turmas de Direito Privado do Tribunal. A comissão de Direito de Família e das Sucessões foi presidida pelo Ministro Mauro Campbell Marques, com o auxílio na coordenação dos juristas Professores Otavio Luiz Rodrigues Jr., Rodrigo Xavier Leonardo e Maria Berenice Dias. A relatoria da comissão coube ao Professor e Magistrado Pablo Stolze Gagliano. Após as votações na própria comissão e na plenária final – muito intensas –, foram aprovados seis enunciados doutrinários, que passo a analisar brevemente, com foco nas suas próprias justificativas, e sem prejuízo de novas reflexões futuras.
O primeiro deles, o Enunciado n. 671, analisa o art. 1.583, § 2º, do Código Civil, prevendo que “a tenra idade da criança não impede a fixação de convivência equilibrada com ambos os pais”. Como está em suas justificativas, “a lei não faz menção ou restrição à idade da criança como limitador ao direito de convivência. Todavia, em fixação de convivência de bebês ou crianças de tenra idade, o que se vê é o estabelecimento de regimes restritíssimos, com a fixação de poucas horas mensais para o convívio. A situação é especificamente grave quanto à convivência fixada em favor dos pais homens, tendo em vista a questão sociológica enraizada que, equivocadamente, atribui apenas à mulher a capacidade para o cuidado. O bebê, que está começando a descobrir o mundo, tem condições psicoemocionais de criar laços de afinidade com seus familiares e demais pessoas que o cercam. É, portanto, na tenra idade que o petiz construirá os vínculos mais fortes e duradouros de sua vida. O tempo tem outra dimensão para as crianças pequenas. Cada dia perdido por um dos genitores é um momento de exploração, aprendizado e vinculação. O infante precisa de sua mãe e de seu pai para que seu desenvolvimento seja saudável”.
A questão colocada pelo enunciado tem sido debatida em nossos Tribunais, o que foi intensificado nos últimos dois anos, sobretudo em virtude dos desafios decorrentes da pandemia para a convivência de pais e filhos. Em um primeiro aresto ilustrativo, o Tribunal Paulista ampliou a convivência do pai com filho de tenra idade no seguinte contexto fático: “Mudança de contexto social e do quadro de saúde pública. Perícia psicológica e social determinada, mas ainda não realizada. Mais de 1 (um) ano sem contato físico entre pai e filho de tenra idade. Prejuízo ao vínculo afetivo e desenvolvimento psicológico da criança. Observância do melhor interesse do menor. Majoração das visitas presenciais para 1 vez por semana, aos sábados, por 6 horas” (TJSP, Agravo de Instrumento n. 2207243-45.2021.8.26.0000, Acórdão n. 15768665, São José dos Campos, Nona Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Piva Rodrigues, julgado em 17/06/2022, DJESP 22/06/2022, p. 2265). Também se tem entendido que a alteração no regime de guarda ou convivência em se tratando de criança de tenra idade somente se justifica em casos excepcionais, como se retira dos seguintes acórdãos:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE REGULAMENTAÇÃO DE GUARDA E DIREITO DE VISITAS. Tutela provisória parcialmente deferida para fixar a guarda compartilhada com lar de referência materno e regulamentar o direito provisório de convivência do genitor – insurgência do genitor – pedido de fixação de guarda unilateral ou de inversão do lar de referência. Ausência de prova de situação de risco ou abuso ao infante na companhia materna – art. 1.585, CC – situação de fato – criança de tenra idade (dois anos) sob os cuidados da genitora desde o nascimento – modificação de situação fática somente em situações excepcionais de risco – hipótese não configurada no caso – inexistência de fatos que desabonem a conduta da genitora. Necessidade de prévia instrução probatória – regime de convivência assegurado e ampliado por decisão ulterior – recurso conhecido e desprovido” (TJPR, Recurso n. 0070590-49.2021.8.16.0000, Curitiba, Décima Segunda Câmara Cível, Relª Desª Rosana Amara Girardi Fachin, julgado em 13/06/2022, DJPR 14/06/2022).
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. FAMÍLIA. AÇÃO DE GUARDA, REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS E HOMOLOGAÇÃO DE PENSÃO ALIMENTÍCIA. REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS PATERNAS. CRIANÇA DE TENRA IDADE, EM FASE DE ALEITAMENTO MATERNO. VISITAS SEM PERNOITE. CABIMENTO. MANUTENÇÃO DA DECISÃO. A fim de preservar a necessária convivência entre pai e filha, deve ser regularizada a visitação paterna, devendo ser mantida, nos termos em que fixada pelo juízo singular. Hipótese em que a convivência paterna foi estabelecida às terças e quintas-feiras, das 18h30min às 20h30, na residência da genitora, bem como aos sábados, das 16h às 18h, também na residência da genitora, não havendo motivos que ensejem a reanálise da questão, razão pela qual mantém-se a decisão, em seu inteiro teor. Ausentes elementos que evidenciem a ocorrência de risco ou maus-tratos à menor, devida a visitação do pai à filha, nos termos do pedido inicial, salientando-se que eventuais alterações, desde que devidamente comprovadas, em demonstrado prejuízo ao melhor interesse da criança, poderão ensejar a reanálise da questão. Inteligência do art. 1.589 do Código Civil. Precedentes do TJRS. Agravo de instrumento desprovido” (TJRS, Agravo de Instrumento 5112820-95.2022.8.21.7000, Uruguaiana, Sétima Câmara Cível, Rel. Des. Carlos Eduardo Zietlow Duro, julgado em 08/06/2022, DJERS 08/06/2022).
Como se observa, os arestos destacam a necessidade de se observar o princípio do melhor interesse da criança nas hipóteses descritas, podendo o enunciado trazer essa menção, como foi sugerido na plenária da IX Jornada, mas não foi atendido. De todo modo, tal regramento deve sempre ser observado, orientando a interpretação da ementa doutrinária e de outros temas relacionados à guarda de filhos.
O segundo enunciado aprovado foi o de número 672, preceituando que “o direito de convivência familiar pode ser estendido aos avós e pessoas com as quais a criança ou adolescente mantenha vínculo afetivo, atendendo ao seu melhor interesse”. Cancelou-se, assim, o Enunciado n. 333, da IV Jornada de Direito Civil, que, em vez de mencionar a convivência, utilizava o termo “visita”. Na verdade essa é a expressão utilizada também pelo art. 1.589, parágrafo único, do Código Civil, incluído pela lei 12.398/2011: “o direito de visita estende-se a qualquer dos avós, a critério do juiz, observados os interesses da criança ou do adolescente”. O enunciado, assim, pode motivar a mudança legislativa, estando justificado pelo fato de que, “embora seja da tradição do Direito de Família nomear o direito do pai ou mãe, mesmo dos avós ou outros, que não detêm a guarda, como direito de visita, a expressão legal não corresponde ao direito de convivência familiar assegurado à criança, ao adolescente e ao jovem no art. 227, caput, da Constituição da República. O direito-dever de convivência familiar estende-se a todos aqueles que mantêm vínculo afetivo com a criança e adolescente”.
Ainda a respeito de questões atinentes ao poder familiar ou autoridade parental, o novo Enunciado 673 prevê que “na ação de destituição do poder familiar de criança ou adolescente que se encontre institucionalizado, promovida pelo Ministério Público, é recomendável que o juiz, a título de tutela antecipada, conceda a guarda provisória a quem esteja habilitado para adotá-lo, segundo o perfil eleito pelo candidato à adoção”. A norma diz respeito aos arts. 1.635 e 1.638 do Código Civil, que tratam da extinção do poder familiar, procurando efetivar a adoção por meio da concessão de tutela de urgência, o que vem em boa hora.
Sobre o tema do regime de bens, aprovou-se o Enunciado 674: “comprovada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, o ressarcimento a ser pago à vítima deverá sair exclusivamente da meação do cônjuge ou companheiro agressor”. As justificativas destacam as indenizações por dano moral fixadas contra o agressor, o que decorre do art. 9º, §§ 4º e 5º, da Lei Maria da Penha. Em complemento, o § 6º da mesma norma específica enuncia que essa indenização fixada “não poderá importar ônus de qualquer natureza ao patrimônio da mulher e dos seus dependentes”, estando no último preceito o fundamento principal da ementa doutrinária.
Penso que essa última tese é muito importante, sem dúvidas, mas faltaram outros enunciados quanto ao sempre divergente tema do regime de bens. Infelizmente, duas propostas a respeito da comunicação de verbas, como FGTS e previdência privada, foram rejeitadas na plenária da IX Jornada, no meu entender sem razão, pois traziam o entendimento majoritário da doutrina e da jurisprudência.
Conforme o Enunciado n. 675, “as despesas com doula e consultora de amamentação podem ser objeto de alimentos gravídicos, observado o trinômio da necessidade, possibilidade e proporcionalidade para sua fixação”. A doula é uma profissional que acompanha a gestante durante todo o período de gravidez, o parto e o pós-parto, oferecendo suporte emocional nesses momentos. Na mesma linha, há a atuação da consultora de amamentação. As justificativas da proposta estão baseadas em recomendações da Organização Mundial da Saúde e do Ministério da Saúde, para a efetivação do que se denomina parto humanizado, havendo nesse ponto razões para que as despesas com sua contratação recaiam sobre os alimentos gravídicos, tratados pela lei 11.804/2009. Apesar da denominação da última norma, o Superior Tribunal de Justiça já entendeu que esses alimentos visam ao essencial não só para a gestante como também ao nascituro: “os alimentos gravídicos, previstos na lei 11.804/2008, visam a auxiliar a mulher gestante nas despesas decorrentes da gravidez, da concepção ao parto, sendo, pois, a gestante a beneficiária direta dos alimentos gravídicos, ficando, por via de consequência, resguardados os direitos do próprio nascituro” (STJ, REsp n. 1.629.423/SP, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 06/06/2017, DJe de 22/06/2017).
Como última ementa aprovada, a única sobre Direito das Sucessões, o Enunciado n. 676 interpreta o conteúdo do art. 1.836, § 2º, do Código Civil. Nos termos do seu caput, “na falta de descendentes, são chamados à sucessão os ascendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente”. E, consoante o seu § 2º, “havendo igualdade em grau e diversidade em linha, os ascendentes da linha paterna herdam a metade, cabendo a outra aos da linha materna”. A atual redação do comando é insuficiente para resolver as situações sucessórias relativas a casamentos ou uniões estáveis homoafetivas e à multiparentalidade, reconhecidas em julgamentos do Supremo Tribunal Federal e consolidadas na realidade do Direito de Família Brasileiro (Informativos 625 e 840 da Corte, respectivamente).
Isso porque pode haver mais de uma linha paterna e mais de uma linha materna em hipóteses de sucessão. Para resolver o problema, o novo Enunciado n. 676 estabelece que “a expressão ‘diversidade em linha’, constante no § 2º do art. 1.836 do Código Civil, não deve mais ser restrita à linha paterna e à linha materna, devendo ser compreendidas como ‘linhas ascendentes’”. Essa é, na minha opinião, uma das propostas mais importantes do ponto de vista prático, de todas as que foram aprovadas na IX Jornada de Direito Civil e em todas as comissões temáticas.
Como bem observou Anderson Schreiber, essa foi a Jornada em que prevaleceram teses relativas aos direitos das mulheres, sobretudo em temas de Direito de Família. Conforme escreveu: “entre os muitos aspectos desta Jornada, um deles parece digno de especial atenção: a aprovação de numerosos enunciados voltados à tutela dos direitos fundamentais das mulheres” (SCHREIBER, Anderson. A Jornada dos Direitos da Mulher. Disponível aqui. Acesso em: 25 jun. 2022). Participando desde a III Jornada de Direito Civil, em 2004 – e de um total de quatorze eventos como esse, incluindo as Jornadas de Direito Processual Civil, de Direito Comercial e de Solução Extrajudicial das Controvérsias –, tenho constatado que as Jornadas trazem sempre para debate temas de relevo em cada momento de sua realização, o que confirma as palavras de Schreiber. Algumas das teses ganham força e são efetivamente aplicadas pela jurisprudência nacional. Outras não, pois o tempo e a práxis acabam fazendo essa separação e seleção, pela experiência e concretude do Direito Civil.
Com isso atende-se aos objetivos da Jornada, desde quando foi concebida pelo Ministro Ruy Rosado de Aguiar Jr. e muito bem sinalizados pelo Ministro Luis Felipe Salomão em texto que acompanha a publicação dos enunciados: “a principal função jurisdicional do STJ é ser o último intérprete da legislação infraconstitucional, adequando as normas extraídas dos textos legais ao contexto social, econômico, ambiental, tecnológico e político da realidade contemporânea brasileira. Cabe ao Tribunal da Cidadania garantir a efetividade e a aplicabilidade das leis, conferindo sentido ao direito de forma atual e permitindo um ambiente salutar de resolução de litígios, do qual a segurança jurídica deve ser pilar inabalável. As Jornadas possibilitam – por meio de profunda e democrática atividade dialógica – expor a compreensão moderna do arcabouço normativo, temperado pelo que há de mais inovador na comunidade científica” (Caderno da IX Jornada de Direito Civil. Disponível aqui. Acesso em: 25 jun. 2022).
Espero que as Jornadas continuem a cumprir essa sua função, de motivar o debate científico e prático do Direito Civil, colaborando para a resolução dos problemas das pessoas, vocação natural dos civilistas.
Flávio Tartuce é pós-doutorando e doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Professor do G7 Jurídico. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.
Fonte: Ibdfam