O sistema judiciário brasileiro ainda não está preparado e qualificado para lidar com crianças — principalmente na faixa entre zero e seis anos — nos processos litigiosos na dissolução de casamentos e conflitos entre seus pais e mães. Falta pessoal especializado, equipamentos adequados e material.
Em várias comarcas, profissionais compram materiais com dinheiro do próprio bolso para poder fazer atendimento, as salas nos fóruns não são adequadas para realização de oitivas, entre outros problemas.
Existem boas práticas no campo do sistema de Justiça e redes de apoio relacionadas à primeira infância, mas isso ainda não é o suficiente para atender toda a demanda de forma adequada.
Para compreender a atenção que o Sistema de Justiça brasileiro desempenha na proteção à primeira infância perante as situações de alienação parental e abandono afetivo, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) fez uma pesquisa, a “Proteção da Criança na Dissolução da Sociedade Conjugal”.
Foram ouvidos juízes e equipes técnicas multiprofissionais no Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública sobre o tema. A pesquisa identificou que, em metade das comarcas pesquisadas, o Poder Judiciário não mantinha equipes técnicas e nenhuma das comarcas dispunha de equipes multiprofissionais para atuação nas promotorias e nas defensorias. Também foram detectados problemas em relação aos equipamentos nos fóruns e falta de salas especiais para atender às crianças.
“Os atores atuantes nas promotorias de família e nas defensorias públicas relataram escassez de profissionais multidisciplinares que poderiam ofertar suporte técnico nos processos e planejar, a longo prazo, a atuação em questões da primeira infância. Foram frequentes os apontamentos de atores do Ministério Público sobre atuação de poucos profissionais multidisciplinares em mais de uma comarca, exigindo, em alguns casos, que sejam deslocados profissionais da capital do estado para que algumas demandas sejam atendidas”, aponta relatório da pesquisa CNJ/Pnud.
Os estudos tiveram como base 2,5 milhões de processos de dissolução de casamentos que tramitaram em todo país entre 2015 e 2021. Com base nas informações extraídas das entrevistas e dados, foi revelada exigência de “atenção dos atores do Sistema de Justiça para que os casos em que envolvem crianças, exigindo que elas sejam protegidas diante dos conflitos aos quais involuntariamente estão expostas”. As ações foram extraídas na Base Nacional de Dados do Poder Judiciário (DataJud).
“Para proteção das crianças, a Defensoria Pública precisa uma estruturação maior, no sentido de recursos humanos. E eu nem digo os recursos humanos com relação a mais defensores, mais analistas, que, claro, são necessários, mas da necessidade de psicólogos e assistentes sociais. Porque a gente se esforça para tentar uma conciliação, mas a gente não tem preparo pra isso. A gente aprende no trabalho, mas não tem especialização nesse sentido”, de acordo com relato de integrante da Defensoria Pública não identificado descrito na pesquisa.
Sem recursos humanos
Nem todas as comarcas dispõem de equipes técnicas especializadas em seus quadros. A demanda por recursos humanos de áreas de apoio de fora do Judiciário, como pedagogos, psicólogos e assistentes sociais foi expressiva tanto em comarcas que dispõem de servidores concursados ou cadastrados quanto nas que precisam recorrer à boa vontade de comarcas contíguas, a estudantes de universidades, às redes locais e a serviços das prefeituras, aponta a cientista social Danielly dos Santos Queirós, uma das pesquisadoras do CNJ.
“A pesquisa mostra a importância de se ter equipes técnicas especializadas. E também que a rotatividade hoje é alta. Falta competência específica para a infância”, explica Elisa Colares, também pesquisadora do CNJ. “Não se verificou prática maior aos interesses dessas crianças, principalmente as com idade entre zero e seis anos”, observa Danielly.
Dentro das comarcas, as equipes técnicas são compostas por assistentes sociais e psicólogos, ou apenas uma das categorias, do quadro do Poder Judiciário. No entanto, o número de profissionais disponíveis é insuficiente para atendimento de todas as demandas em tempo hábil, com a atenção necessária, considerando que a atuação das equipes não se dá apenas nas varas de família e sucessões.
Muitas vezes, a equipe é composta por assistente social e estagiários do serviço social para atender à demanda. Eles atuam na Vara da Família, local com maior demanda em questão de quantidade de processos. Mas essas são as mesmas pessoas que também atuam no Juizado da Infância e Juventude, nas prestações de serviços à comunidade na Varas Criminais e nos depoimentos especiais das crianças vítimas de violência doméstica e sexual.
Em cada região do país, a realidade enfrentada é diferente. Nas regiões mais distantes e interioranas, o acesso ao Direito se torna cada vez mais difícil. “As varas, nas comarcas, acumulam as ações”, alerta Elisa.
“Na cidade de São Paulo há Varas de Família. Mas no interior o juiz que julga esses casos é o mesmo que faz o Criminal, o Civil, a Fazenda Pública. Os juízes acumulam funções, várias demandas e não estão preparados com um olhar mais humanizado”, complementa Fernanda Pessanha do Amaral Gurgel, advogada e professora nos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie e diretora do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM–SP).
Alienação parental
Apesar do equilíbrio no número de processos litigiosos e consensuais na dissolução de casamentos no Brasil, um total de 230 mil ações litigiosas evidencia o potencial de envolvimento de crianças em conflitos entre seus pais e mães, constatou a pesquisa.
Dentre os processos de dissolução conjugal incluídos no estudo do CNJ, constatou-se a ocorrência de 1,15 milhão de separações litigiosas, que equivalem a 46,9% do total. Já as consensuais somaram 1,2 milhão (49,2%). As dissoluções não classificadas foram 99 mil (3,9%) e 2,5 mil (1%) se referiam ao término de uniões estáveis.
De acordo com as pesquisadoras do CNJ, o elevado número de resoluções litigiosas já evidencia a existência de conflito entre os adultos envolvidos, problema que ganha maior relevância e gravidade quando envolve crianças ou adolescentes.
Examinando apenas os processos litigiosos, os problemas se expandem. As separações não consensuais também produzem outras demandas para o Poder Judiciário, numa porcentagem muito maior do que a ações de separação consensual.
Nos casos cujo assunto era alienação parental, registrou-se 331,9% a mais de litígios em comparação com os processos consensuais. Considerando a mesma comparação, os casos de busca e apreensão de menores são 318% a mais. Investigações de paternidade aumentaram 93,2%, assim como regulamentação de visitas, 59,9% e também a fixação alimentos, com 54,8%.
Outro problema, segundo especialistas, é que nem sempre os advogados estão atentos aos interesses das crianças. “Atuam em prol do pai ou da mãe. O Estatuto da Criança e do Adolescentes, que existe há 32 anos, é pouco conhecido pelos advogados. Na maioria das vezes, os processos são decididos com base no Código Civil e pouco no ECA”, aponta Ariel de Castro Alves, advogado especialista em direitos humanos, membro do Instituto Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, ex-conselheiro do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).
Falta de estrutura
Quando a pesquisa CNJ/Pnud estudou as estruturas físicas e condições para garantia do sigilo profissional durante os atendimentos, embora algumas profissionais tenham respondido que atendem em salas adequadas, na maior parte das comarcas, as equipes demonstraram preocupação com a proteção das crianças em virtude das estruturas das salas.
Como não há isolamento acústico nas salas de atendimento, não é possível garantir o sigilo, expondo as crianças a situações inadequadas. Um relato reproduzido no estudo narra: “muitas vezes eu estou com uma criança na sala de atendimento infantil e, ao lado, na sala de atendimento adulto, a assistente social pode estar conversando com o pai dessa criança. E a criança pode ouvir absolutamente tudo o que é dito na sala ao lado, então a gente tem que ter esse cuidado de terminar o atendimento do pai, para depois fazer o da criança. Essas situações são bem complicadas e a gente não consegue garantir o sigilo e a proteção dessa criança que fica ali exposta a informações que talvez ela ainda não precisasse ter.”
Outras condições de trabalho dos profissionais que lidam com as crianças envolvidas nas separações litigiosas também apresentam fragilidades, segundo o CNJ. Muitos profissionais compram materiais com dinheiro de seu próprio bolso, pois a aquisição de forma oficial depende de burocracia.
Hoje, uma ação litigiosa de separação demora entre dois e seis anos para ser concluída, considerando todas as fases processuais. “Uma perícia, por mais bem feita que seja, está longe do razoável. Demora quase um ano para ser marcada e se resume a um psicólogo ou assistente social num único diálogo com os pais e a crianças. É preciso algo mais rápido”, reclama Fernanda.
As brinquedotecas ou salas infantis são considerados espaços essenciais para acolhida, estabelecimento de vínculos e uma boa oitiva das crianças. O que não é a realidade em muitos locais, segundo relato de uma psicóloga ouvida na pesquisa.
“A brinquedoteca foi inaugurada em 2010, isso possibilitou utilizar métodos que antes a gente não conseguia. Porém estão um pouco defasados, pois não foram renovados desde a inauguração. Os materiais que hoje usamos, somos nós que adquirimos: lápis de cor, brinquedos e materiais de testes, teste de avaliação de desenvolvimento, teste de avaliação emocional infantil. Não há investimento em materiais. Seja de brinquedos para ajudar na interação e no estabelecimento de vínculo com a criança, mas também em material técnico”
O sistema de Justiça também encontra algumas dificuldades para o cumprimento de determinação para a celeridade e prioridade processual nas ações onde há indícios de atos de alienação parental, prevista na Lei 12.318/2010, artigo 4º. De acordo com os profissionais ouvidos pelo CNJ, tal dificuldade se dá pela não especialização no assunto, além da ausência de assistentes sociais e psicólogas para avaliar tecnicamente os processos.
“Para garantir a celeridade das situações e para que se pense na proteção mesmo da criança que pode estar passando por esses processos nós temos uma deficiência em duas frentes. A primeira é que nós não somos uma Vara Especializada nisso. A segunda, é a ausência de assistentes sociais e psicólogas que possam avaliar tecnicamente esses processos”, relata integrante do Poder Judiciário, cuja identidade não foi apontada no estudo.
Para Izabel Cavallini Bajjani, sócia fundadora do escritório Bajjani e Zarif Sociedade de Advogados, o Judiciário tem hoje uma defasagem muito grande não só de material para os processos de separação litigiosa de casais, mas também humana. “Há muito despreparo de peritos. Além disso, temos sofrido muito com decisões padronizadas”, aponta Izabel cujo escritório é especializado em Direito das Família e Sucessões.
Sobrecarga de trabalho
Os profissionais que atuam nesses processos litigiosos de separação de casais envolvendo crianças, por sua vez, se queixam da sobrecarga de trabalho, de acordo com as entrevistas realizadas pelo CNJ.
“Durante as entrevistas, foi possível captar, por meio dos depoimentos das equipes técnicas, o compromisso e o vínculo para com a função exercida e preservação dos direitos das crianças na primeira infância. Contudo, as fragilidades desencadeadas em razão do acúmulo de demandas, atreladas à insuficiência de corpo técnico para atender às diversas varas da comarca, refletem na sobrecarga dessas profissionais”, descreve o relatório do estudo.
De acordo com as profissionais que responderam às questões da pesquisa, a questão da sobrecarga é delicada, considerando que, em virtude da quantidade de processos sobre essas e outras questões que envolvem a infância, as assistentes sociais e psicólogas avaliam que o tempo de convivência, de visita e de acompanhamento das famílias seria muito curto para definir se haveria ou não ato de alienação parental.
“Mas o sistema ainda tem pensamento muito retrógrado em relação ao acompanhamento das crianças, como entender a situação delas, como ouvi-las. É necessária uma oitiva melhor, mais aprofundada. Também é necessária uma reciclagem dos profissionais, que em muitos casos têm posturas muito superficiais”, afirma Izabel.
Segundo os relatos contidos na pesquisa, os atendimentos às crianças são realizados, na maioria dos casos, pelas psicólogas. Durante as entrevistas, foram expressas algumas preocupações sobre a impossibilidade de acompanhamento das crianças após o fim do processo e aos impactos que os atendimentos poderiam gerar caso adentrassem em questões mais profundas, sobretudo no que se refere a crianças na primeira infância.
As entrevistadas afirmaram que a impossibilidade do acompanhamento se daria, sobretudo, pela quantidade de demandas atendidas, pelos prazos curtos para realização dos estudos e, também, pelo próprio papel da equipe técnica no Sistema de Justiça, que não é de acompanhamento clínico.
Proposições
Os resultados das pesquisas que compõem o estudo “Proteção da criança na dissolução da sociedade conjugal” podem apoiar o aprimoramento das estratégias de priorização e de proteção da criança na primeira infância.
O CNJ faz as seguintes propostas a diferentes setores do Poder Público e da rede de proteção. “Vale enfatizar que as proposições listadas não esgotam as necessidades de avanços e de aprimoramentos nessa matéria e são todas baseadas em evidências dos resultados deste diagnóstico”, informa o relatório do estudo.
Ao Poder Judiciário
1) Ampliar a qualificação das equipes técnicas e dos(as) magistrados(as) para aplicação da Oficina de Parentalidade do CNJ;
2) Ampliar a oferta de mediadores que possam atuar nas causas de família;
3) Ampliar o treinamento das equipes técnicas multidisciplinares para oitiva de crianças, promovendo estratégias direcionadas às crianças com idade até 6 anos;
4) Promover a integração entre varas de infância, varas de família e varas de violência doméstica e familiar contra mulher, justificada pela inter-relação entre vários dos processos judiciais;
5) Incentivar e/ou disseminar de projetos voltados ao atendimento específico de famílias em alto litígio, pontual ou de longa duração, visando preservar a segurança física, afetiva e emocional da criança;
6) Criar mecanismos que permitam os estudos psicossociais adequados para assessorar o juízo nos casos que envolvam crianças na primeira infância;
7) Promover de agenda nacional de encontros formativos e troca de experiências entre os membros das equipes multiprofissionais que atuam em processos da primeira infância, a fim de proporcionar o nivelamento conceitual, metodológico e técnico dos seus componentes;
8) Fortalecer e aprimorar as equipes técnicas para atender qualificadamente as crianças em casos de oitivas e depoimentos especiais, resguardadas também as especificidades dos povos e comunidades tradicionais.
Ao Sistema de Justiça
1) Ampliar a participação dos atores do Sistema de Justiça envolvidos nas causas de família em capacitações e sensibilizações sobre a atenção à primeira infância;
2) Incentivar o atendimento extrajudicial, sempre que possível, conveniado com universidades e com a rede de proteção social municipal, favorecendo o ambiente de mediação e solução consensual dos conflitos que previna judicialização;
3) Por meio da Comissão de Infância e Juventude do Ministério Público, da Comissão de Infância e Juventude da Defensoria Pública e do Fórum Nacional da Infância, manter estratégias de fortalecimento de vínculos interinstitucionais entre os atores do Sistema de Justiça, como forma de efetivar a atuação em rede;
4) Fortalecer a atuação do Sistema de Justiça no cumprimento do disposto no art. 4º do Marco Legal da Primeira Infância, sobre elaboração dos Planos Municipais da Primeira Infância e sobre o monitoramento das políticas públicas para a primeira infância;
Ao Datajud
Viabilizar a marcação de processos que envolvem crianças na primeira infância, possibilitando a prioridade para tramitação.
Fonte: ConJur