A psicopedagoga e sexóloga Thaís Emilia de Campos dos Santos, 43, descobriu que estava grávida de um filho intersexual durante um exame de ressonância fetal realizado em 2016 — o bebê não tinha testículos, útero ou ovário. Sem ter um sexo definido, após o nascimento, Jacoby ficou dois meses sem certidão de nascimento: o documento só saiu após um exame cariótipo realizado na criança, que a identificou como um menino. “Levei dois meses porque fiz pela rede particular, senão demoraria mais”, afirma Thais.
A partir desta segunda-feira (13), uma decisão da Corregedoria Nacional de Justiça impede que casos como os de Thaís e Jacoby se repitam. A determinação, validada pelo Plenário do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), garante que crianças que nascem intersexo poderão ser registradas como “sexo ignorado” na certidão de nascimento em qualquer Cartório de Registro Civil, sem autorização judicial ou apresentação de laudo médico.
Em casos de crianças que nascem intersexo, a recomendação é que a DNV (Declaração de Nascido Vivo) seja preenchida pela equipe médica que realizou o parto com o sexo “ignorado”. Mas até hoje, na maioria dos cartórios do Brasil, os pais precisam acionar a Justiça para emitir a certidão de nascimento com esse campo.
De acordo com a Arpen-Brasil (Associação dos Registradores de Pessoas Naturais), entre 2019 e agosto deste ano, dos 7,2 milhões de registros de nascimento feitos no Brasil, 21.888 documentos foram registrados com o campo “sexo ignorado”.
Para a diretora da instituição, Andreia Galiardi, a decisão do CNJ ainda deve facilitar a alteração da certidão, se assim a pessoa desejar. “Fica mais fácil alterar o sexo e nome sem a necessidade de autorização judicial”. “Uso do termo ‘ignorado’ é desumano”, afirma advogada.
Presidente da Comissão LGBTQI+ da OAB/SE, a advogada Mônica Porto atuou em nome da Abrai (Associação Brasileira de Intersexos) para que a decisão saísse. Ela, que é intersexo, acredita que a decisão representa um avanço, mas faz uma ressalva. “O uso do termo ‘ignorado’ é desumano. Como se faz política pública? Como vamos conseguir médicos especializados para crianças que têm sexo ignorado?”, afirma.
A advogada também chama a atenção para o fato de que a decisão da autonomia aos responsáveis para mudar o sexo e o nome da criança sem o seu consentimento até os 12 anos. Para ela, é a criança ou adolescente quem deve ter esse poder de escolha.
“O Estatuto da Criança e do Adolescente traz as crianças e os adolescentes como sujeitos de direito, e não objetos de direito dos pais. E o que a gente quer também com esses documentos é fazer com que se diminua essa imposição dos médicos pela cirurgia.”
Cirurgia não é unânime
Thais e o marido Beto receberam a recomendação de que fosse feita uma cirurgia após o nascimento de Jacoby. Como a criança não tinha testículos, o urologista que examinou indicou que fosse feito um canal vaginal no bebê. O casal contrariou a indicação e decidiu que esperaria até a puberdade da criança para que ela decidisse sobre o seu corpo. Jacoby, porém, acabou falecendo em 2018, em decorrência de problemas cardíacos. Por conta da sua experiência, Thais fundou a Abrai, escreveu o livro “Jacoby”, e atua no atendimento a famílias de intersexos atendidas na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
Para um grupo de especialistas, fazer uma plástica no órgão sexual traz menos traumas à criança e família, enquanto outra parte insiste que se as funções do corpo não estiverem prejudicadas, o recomendável é acompanhar o desenvolvimento desta pessoa.
Thais é contra. “Faço muita campanha para arrecadação de fralda para crianças que ficaram com sequelas dessas cirurgias como continência urinária e fecal. Alguns adultos operados também têm problemas. Nosso argumento é: você vai fazer uma vagina numa bebê sem saber se ela vai querer ser penetrada quando crescer?”.
O endocrinologista Magnus Regios Dias da Silva, professor da Escola Paulista de Medicina, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), segue essa linha, salvo em casos necessários, como um comprometimento urinário. Magnus acredita que o acompanhamento deve incluir um trabalho de educação e informação, sobretudo de conceitos de orientação sexual e identidade de gênero.
“Parto da ideia de que o diagnóstico da pessoa intersexual é necessário para cuidar bem dessa criança e da família, para que elas possam viver com essas anatomias variadas e serem aceitas, não para fazer a cirurgia. Imagine a criança fazer cirurgia para criar vagina e ter que usar um dilatador. Além de dor e desconforto, isso pode implicar numa dificuldade grande de relacionamento”, afirma.
A endocrinologista Berenice Bilharinho de Mendonça, do HC-FMUSP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo) discorda. Segundo ela, há uma recomendação médica para que se faça uma plástica na criança, principalmente quando a genitália é bastante atípica. “Você não sabe como essas crianças que não serão operadas vão lidar com essa situação. Eu posso dizer que quando recebemos pessoas adultas que não foram operadas na infância, todas falam que gostariam de ter sido tratadas naquela época.”
Mas para o procedimento acontecer, Berenice indica que a criança precisa ser atendida por equipes especializadas em intersexualidade e assim fazer todos os exames necessários. “É preciso ter uma certeza do diagnóstico. Não basta examinar a genitália, tem que fazer alguns exames para definir qual a alteração congênita.”
O que define uma pessoa intersexual
Até os dois meses de vida intrauterina, a genitália e as gônadas (glândulas sexuais) são idênticas. A partir da oitava semana de gestação, se o feto possuir testículo, ele produzirá hormônio masculino, e consequentemente desenvolverá pênis, uretra e bolsa escrotal.
Mas se esse feto não produzir o hormônio masculino ou esse hormônio não agir como deveria, ele nascerá com a genitália incompleta.
Desta forma, ele é identificado, na medicina, com “Anomalia da diferenciação sexual 46 XY” — os homens são identificados como cariótipo XY e as mulheres, XX. Elas podem ter, por exemplo, pênis e útero. Ou nem ter o problema aparente.
Segundo especialistas, há casos ainda em que a pessoa nasce com as gônadas, mas elas só retomam o funcionamento quando a adolescente entra em puberdade, muitas vezes após os 12 anos, momento em que é percebido que a voz fica grave, os pelos aumentam e a pessoa adquire características atribuídas ao corpo masculino. Exames comuns feitos durante o pré-natal e após parto da criança podem não conseguir identificar essa variação.
Fonte: UOL