O sistema brasileiro das sucessões é composto por três disciplinas: 1) o Direito Civil, que se dedica ao estudo do Direito material, notadamente quanto aos aspectos subjetivo (herdeiros e/ou legatários) e objetivo (a herança) da sucessão; 2) o Direito Processual Civil e o Direito Notarial, que cuidam dos procedimentos do inventário (obrigatório em nosso país [1]), da partilha e de outras ações inerentes à sucessão; e 3) o Direito Tributário, o qual estrutura a incidência de impostos (não apenas o ITCMD) na sucessão.
Desse modo, o estudo das sucessões a partir da compreensão sistemática dessas disciplinas, apreendidas segundo o pressuposto de que o ordenamento jurídico é único, proporciona o rompimento de certos dogmas em torno da matéria. O primeiro — e mais evidente — diz respeito ao droit de saisine, o qual não se encontra acolhido no sistema brasileiro de sucessões.
Com efeito, apesar de o Código Civil apresentar a fórmula da saisine em seu artigo 1.784 e prescrever que “a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários”, a imperatividade do inventário (Direito Processual Civil ou Notarial) e a necessidade de pagamento de tributos (Direito Tributário) para ultimar a transferência dos bens fazem cair por terra a denominada transmissão “desde logo”.
Sob tal perspectiva, a simples investidura dos beneficiários em direitos hereditários, com efeito, não representa a saisine, destinada a uma efetiva e rápida transmissão dos bens a herdeiros, contrariamente ao que ocorre no Brasil [2]. A constatação fática do que aqui se evidencia é simples: basta pensar se, no Brasil, um herdeiro, universal que seja, pode ter acesso a valores mantidos pelo autor da herança em conta bancária, sem que antes se submeta a inventário, adjudicação e pagamento de tributos.
Portanto, a consciência de que a sucessão no Brasil deve ser considerada para além do Direito Civil demanda uma compreensão dos elementos estruturantes do sistema e a adequação de suas ferramentas à realidade que se está diante. E o testamento, com efeito, é um desses instrumentos que necessitam expandir suas potencialidades para além do Direito Civil, respeitada, evidentemente, a limitação que o ordenamento impõe ao testador por meio da denominada legítima.
Sabe-se que o testamento é “o negócio jurídico pelo qual uma pessoa dispõe sobre a própria sucessão” [3]. Assim, partindo do entendimento de que a decisão a respeito da própria sucessão deve seguir os princípios e regras do sistema sucessório brasileiro, torna-se lícito afirmar que o aumento da negociabilidade processual, fomentada pelo Código de Processo Civil de 2015, estende-se ao ramo das sucessões. Logo, entre as escolhas que o testador poderá fazer e manifestar através de cláusulas testamentárias, inserem-se, além da destinação dos bens em si, aquelas relativas ao procedimento de inventário e partilha.
O ânimo legislativo na adaptabilidade do procedimento é visto, inclusive, de forma expressa no artigo 610, §1º, do CPC, que admite que o inventário e a partilha sejam feitos por escritura pública, desde que os herdeiros sejam capazes e concordes, excluindo-se a necessidade de processo judicial, bem como na possibilidade de acordo entre os litigantes sobre a conversão do processo de inventário para arrolamento sumário, a teor do que dispõe o artigo 659 do CPC.
Por outro lado, sabe-se que a mudança legislativa não é suficiente para transformar, por si só (e da noite para o dia), a adaptabilidade do procedimento. No entanto, é a partir da novidade trazida pelo artigo 190, caput, do CPC/2015 que a atipicidade dos negócios jurídicos processuais ganha força, sem se limitar, portanto, aos casos expressos em lei [4].
Com efeito, se a celebração de negócio jurídico processual pode ocorrer antes ou depois da instauração do processo [5], significa dizer que é possível dispor sobre os procedimentos que serão adotados no inventário, partilha e demais ações sucessórias, por meio de cláusulas testamentárias, as quais, aceitas pelos beneficiários, poderão criar mecanismos mais céleres e efetivos para a transmissão sucessória.
Percebe-se, desse modo, que a cláusula geral do artigo 190 do CPC autoriza o testador a elaborar cláusulas testamentárias sobre o processo e procedimento [6], sendo possível, neste espaço, exemplificar três potencialidades para ilustrar. São elas: 1) escolha do foro em que se processará o inventário judicial ou o cartório, se for extrajudicial; 2) indicação de um avaliador para os bens do monte; e, ainda, 3) prefixação de honorários advocatícios em ações derivadas da sucessão.
Como se sabe, a competência para abertura do inventário judicial é relativa, por se tratar de competência territorial [7]. Portanto, nada impede que o interessado na elaboração do seu testamento indique o foro onde deverá ser processado o inventário e a partilha. Da mesma forma, pode o testado indicar, desde já, o cartório de notas em que o inventário de seus bens e respectiva partilha devam ser escriturados [8].
Vale notar que as disposições acerca do local do inventário não apenas contemplam o exercício de uma autonomia privada pelo testador no campo processual ou notarial, mas também na seara tributária, haja vista que os bens móveis serão ofertados à tributação no Estado em que se localiza o juízo ou o cartório de notas escolhido para se processar o inventário ou arrolamento (artigo 155, §1º, II, CR).
De outro lado, um dos pontos de conflito em um inventário é a avaliação dos bens. Aqui, também, é possível pensar no exercício de uma autonomia pelo testador. Se é possível às partes convencionarem sobre a escolha do perito (artigo 471, CPC), a indicação, em testamento, de um avaliador dos bens que compõe a herança é plenamente cabível.
E, na hipótese de judicialização de algum ponto oriundo da sucessão testamentária, pode o testador, tal como em negócios jurídicos em geral, fixar o percentual máximo de honorários advocatícios devidos pelo sucumbente (20% — artigo 85, §2º, CPC), de forma que as partes levem em consideração os custos e os riscos para a tomada de decisão em torno do ajuizamento.
Não há, por fim, necessidade de homologação judicial para que que o negócio jurídico processual aposto em testamento produza seus efeitos, visto que o artigo 200 do CPC afirma que as declarações unilaterais (ou bilaterais) produzem imediatamente a constituição, modificação ou extinção de direitos processuais, salvo quando houver regra expressa [9]. Os efeitos pretendidos, na realidade, serão produzidos a partir da simples aceitação da sucessão disposta em testamento.
Essas ideias iniciais permitem que todo o sistema brasileiro de sucessões seja contemplado por um movimento de ampliação das potencialidades do testamento, para além das conhecidas funções que lhe foram emprestadas pelo Direito Civil.
Se o Direito Processual contemporâneo tem autorizado um espaço maior de exercício da autonomia privada pelos jurisdicionados [10], o sistema sucessório não poderá deixar de enxergar essa tendência. Resta aos operadores do Direito, cuja matéria enfrentam no cotidiano, atuar de forma criativa, embora sem perder o norte da dogmática, de modo a incorporar as enunciadas mudanças à rotina.
[1] Reconhecendo a obrigatoriedade do inventário: TEPEDINO, Gustavo; NEVARES, Ana Luiza Maia; MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Direito das Sucessões. In: TEPEDINO, Gustavo (org). Fundamentos de Direito Civil, volume 7. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 253.
[2] Para constatação de que o sistema brasileiro de sucessões não adotou o modelo francês de saisine, remete-se a ZOPPINI, Andrea. Le Sucessioni in Diritto Comparato. Milão: UTET, 2002. p. 25-47.
[3] GOMES, Orlando. Sucessões. Atualizado por Mario Roberto Carvalho de Faria. 17ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense. p. 80.
[4] NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios Jurídicos Processuais. 3ª ed. Salvador: Ed. Juspodivm, 2018. p. 263
[5] CABRAL, Antonio do Passo. Convenções Processuais. 2ª ed. Salvador: Ed. Juspodivm, 2018. p. 326/327
[6] Enunciado 257 do FPPC: “O artigo 190 autoriza que as partes tanto estipulem mudanças do procedimento quanto convencionem sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais” (grupo: negócios processuais).
[7] ROSA, Conrado Paulino da., RODRIGUES, Marco Antonio, Inventário e Partilha. Teoria e Prática. 1ª ed. Salvador: Ed. Juspodivm, 2019. p. 334.
[8] A despeito do disposto no artigo 610, CPC, corregedorias dos Estados têm permitido a realização de inventário extrajudicial ainda que haja testamento, cujo entendimento já foi acolhido pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça: REsp 1808767/RJ, relator ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 15/10/2019, DJe 03/12/2019/.
[9] Enunciado 133 do FPPC: (artigo 190; artigo 200, parágrafo único) “Salvo nos casos expressamente previstos em lei, os negócios processuais do artigo 190 não dependem de homologação judicial” (grupo: negócios processuais). Enunciado 261 do FPPC: (artigos 190 e 200) “O artigo 200 aplica-se tanto aos negócios unilaterais quanto aos bilaterais, incluindo as convenções processuais do artigo 190” (grupo: negócios processuais).
[10] DIDIER JR., Fredie. Princípio do respeito ao autorregramento da vontade no processo civil. In: CABRAL, Antonio; NOGUEIRA, Pedro Henrique (org.). Negócios Processuais. Salvador: Juspodivm, 2015, p.33.
Fonte: Conjur