“Siendo un oficio el de escribano, sin el cual andaría la verdad por el mundo a sombra de tejados, corrida y maltratada; y así dice el eclesiástico: in manu Dei prosperitas hominis, et super faciem scribae imponet honorem suum”
Miguel de Cervantes
Há uma confusão recorrente, em especial para quem não tem familiaridade com temas ligados aos serviços extrajudiciais, entre a fé pública notarial e a registral.
Em decorrência da filiação comum dos “órgãos da fé pública” 1ao mesmo dispositivo constitucional2, bem como da estruturação rudimentar dada por uma mesma norma organizadora3, as duas funções aparecem muitas vezes amalgamadas no cognome comum de “cartórios”.
Contribui para tal situação, o fato de o art. 52 da lei 8.935/94, ao organizar as competências registrais e notariais, ter garantido a algumas especialidades registrais a continuidade de exercício, em alguns estados da federação, de certas funções notariais, donde ser possível, por exemplo, no Estado de São Paulo, praticar o ato de reconhecimento de firmas – tipicamente notarial – junto aos registradores civis.
Aos olhos do cidadão incauto, qualquer cartório, seja aquele onde se casa e se registram filhos, seja aquele onde se assinam escrituras e se fazem testamentos, teria as mesmas atribuições. O fato de se poder reconhecer firmas em ambos assim o comprovaria. E não há que se negar que o reconhecimento de firma é, por metonímia, a representação do serviço supostamente prestado por todos os cartórios e especialidades frente à população em geral, como se o fim último de todos os cartórios fosse tão somente o reconhecimento de firmas – paradoxalmente, ato que vem se tornando cada vez mais subsidiário no dia a dia notarial, a despeito de iniciativas de mercado e de especialidades registrais que procuram desenvolver seus próprios produtos concorrentes com as mesmas funções.
Esse tipo de confusão leiga é, todavia, eventual e surpreendentemente, reproduzida também no próprio mundo jurídico especializado, por seus operadores e reguladores, os quais deveriam ser, ao contrário, os primeiros a velar pela coerência do sistema extrajudicial.
É salutar, assim, de quando em quando, descer aos princípios e estruturas formadores das diferentes instituições para afastar ideias que exsurgem “fora do lugar” e que acabam por gerar mais confusão e perplexidade, em detrimento das próprias funções que, bem diferenciadas, prestam um “output” mais eficiente.
Apesar de herdeiras de um arcabouço normativo comum no país, a atividade registral e a notarial em muito se diferem, muito antes da própria existência de sua ordenação em solo brasileiro.
É exatamente essa diferença secular, tributária de um desenvolvimento histórico longevo, que conforma cada instituição, e que, nas palavras de Reinhard Zimmermann, citando Savigny, faz com que não haja algo como uma “autonomous human existence entirely isolated from the past”, pelo que “we cannot freely fashion our own existence, including our laws”4.
Nesse sentido, a história da função notarial é, em grande medida, a história da diferenciação entre as provas testemunhal e documental. O gérmen da fé pública notarial se encontra, nos primórdios, no processo probatório judicial, tendo sua eficácia intrinsecamente vinculada ao desenvolvimento da prova documental que, pouco a pouco, veio a substituir as declarações testemunhais de seus autores.
Pode se traçar os albores de tal evolução na constituição LXXVI de Justiniano5, diferenciando os documentos particulares dos documentos produzidos ante o tabellio romano, sendo este último alcunhado de “abuelito” do notário moderno6.
Em referida constituição se estatui que o documento privado deveria ser firmado por testemunhas, em número mínimo de 3, e que, em caso de contestação, deveriam ser tais testemunhas chamadas a depor em juízo, demonstrando, assim, que a fé do documento privado não seria maior do que aquela que merecessem as pessoas – partes e testemunhas – que o firmassem. Em outras palavras, o limite da força probatória do documento privado se dava nos mesmos exatos limites da capacidade da prova testemunhal que o defendesse.
Por sua vez, embora o documento notarial também devesse ser firmado por testemunhas, já apontava o ato do imperador que, morto o notário que confeccionou a escritura, e não tendo sido assinada por testemunhas, ainda assim deveria receber alguma fé. É, por assim dizer, a ancestral da fé pública notarial.
Pouco a pouco, a confiança do aparato estatal judicial sai da pessoa responsável pela realização do documento e se transfere à função pública de produção de documentos, e, nesse momento, em específico, com a objetivação da função frente à pessoa, tal confiança recai sobre o documento público produzido no exercício da referida função.
Tanto notários quanto, posteriormente, registradores têm uma qualidade em comum consistente em produzir documentos com o selo da fé pública, o que significa que os documentos atestados no exercício de tais funções fazem prova por si bastante – “prova plena”, dirá o art. 215 do CC em relação às escrituras públicas -, não necessitando de outros meios de prova para atestar aquilo que a própria lei determina que seja considerado conforme o estado em que atestado por tais funcionários no exercício de suas funções.
Ora, não haveria qualquer sentido em se organizar todo um aparato estatal com a função especial de se fornecerem informações confiáveis – “fé pública” -, se a autoridade judicial pudesse a qualquer momento afastar essa informação com base em uma livre valoração que não tomasse previamente para si a específica questão de se negar, no caso concreto, a presunção de legitimidade de tais documentos. Um juiz que simplesmente ignora um documento produzido com fé pública, sem antes destruir a fé pública de tal documento em decisão adequada e especificamente fundamentada, não está decidindo contra o funcionário, pessoa que o produziu, mas, sim, contra a própria lei que atribuiu a tal documento eficácia especial7.
A organização notarial e registral permite que situações de direito nem sempre imediatamente observáveis na realidade física das coisas – e assim, por exemplo, a propriedade, em contraposição à posse – possam receber respostas rápidas e confiáveis por meio do documento notarial ou registral – por ex. a matrícula do imóvel.
Embora possuam a mesma função e eficácia – fato que talvez seja o gérmen de toda a confusão -, a fé pública registral e a fé pública notarial possuem diversas estruturas, objetos e modos de atuação. E é da adequada coordenação entre ambas que o sistema extrai o melhor de suas qualidades.
Em relação à estrutura, a fé pública notarial opera segundo a clássica regra do visis et auditis suis sensibus. O notário só dá fé daquilo que vê e ouve por seus próprios sentidos. Em comparação ao processo de cognição judicial, que é retrospectivo e se faz de forma mediada, tomando o juiz conhecimento do caso a partir de documentos produzidos por outras pessoas e fatos por outras testemunhas presenciados, a cognição notarial é sempre simultânea ao acontecimento e imediata aos fatos. Trata-se do princípio da imediação8, o qual, junto da forma e do protocolo,”han hecho al notariado”9.
Segundo Rafael Nuñez Lagos, “al Derecho Notarial incumbe más que ningún otro el principio de la inmediación. La presencia física, directa, inmediata de las personas (comparecencia) y de las cosas (exhibición), es la base del Derecho Notarial”10.
A imediação enquanto base da fé pública notarial remonta novamente à fase romana, na qual a contratação ritualística solene se dava de forma oral perante o notário que era então encarregado de reduzir a escrito, em especial a partir da fase pós-clássica, os exatos termos daquilo que viu e ouviu acontecendo a sua frente. É nesse sentido que as escrituras eram redigidas, até a alteração promovida em Bolonha por Rolandino11, na primeira pessoa:”Eu, fulano de tal, prometo…”. Em síntese, em princípio, todas as “escrituras” eram, na verdade, atas, e as atas formam a base da fé pública notarial até hoje.
Mesmo após toda a longa evolução histórica que trouxe o notário do papel de narrador privilegiado para o de verdadeiro consultor jurídico e confeccionador do negócio escriturado, toda escritura conserva ainda muito de ata. Assim, na clássica abertura “saibam quantos a presente virem, que na data de…, em…, compareceram…”, tem-se, nada mais, do que uma pequena ata ainda narrativa dos fatos que darão base ao contrato na parte ulterior e negocial das escrituras. Nesses termos, se em toda escritura existe uma parte “ata”, por óbvio, não pode lavrar escrituras, quem não é capaz de confeccionar atas.
Por sua vez, a fé pública registral se dá especificamente sobre o próprio acervo do registrador. Este não presencia os fatos narrados nos títulos que publica (leia-se, registra). A certidão do ato registral é uma certidão sobre o que foi inscrito e se encontra nos livros registrais, não sobre o fato narrado no título a ele apresentado para tal inscrição, que ele sequer presenciou. A imediação é princípio notarial, não registral, e disso decorrem as diferentes formas de operacionalização das fés públicas.
Essa específica diferença é bastante clara, por exemplo, na forma como se registram fatos – não negócios – na tábula registral. Nenhum registrador civil precisa presenciar os nascimentos que publica em seu livro “A”, nem tampouco tem qualquer contato com os fatos que ocasionam o óbito devidamente inscrito no livro “C”. Toda a fé pública dos livros de registro civil indicados se baseia em títulos que sejam adequadamente confiáveis e controlados – a declaração de nascido vivo e a declaração de óbito – mas que não foram produzidos pelo registrador. Em sentido diverso, nenhum notário poderia jamais atestar o nascimento de uma pessoa se não o presenciasse por seus próprios sentidos.
É dessa presença imediata do notário frente aos fatos, mas apenas mediata do registrador por meio de seus registros, que Vicente de Abreu Amadei declara que “em sede de fé pública – desculpem-me os Registradores – mas a primazia é dos Notários, pois neles, mais do que em qualquer outro profissional, a fé pública é seu princípio, seu meio e seu fim. (…) Os Tabeliães – e só eles – têm vocação testemunhal; os Registradores, não.12”
É certo que tanto o registro imobiliário, quanto o tabelionato de notas estão destinados à segurança jurídica, mas não do mesmo modo. Nos dizeres de Ricardo Dip, “o notário dirige-se predominantemente a realizar a segurança dinâmica; o registrador, a segurança estática; o notário, expressando um dictum – conselheiro das partes, cujo actum busca exprimir como representação de uma verdade e para a prevenção de litígios; de que segue sua livre eleição pelos contratantes, porque o notário é partícipe da elaboração consensual do direito; diversamente, o registrador não exercita a função prudencial de acautelar o actum, mas apenas a de publicar o dictum, o que torna despicienda a liberdade de sua escolha pelas partes: o registrador não configura a determinação negocial.13”
Essa é, em síntese, a base do sistema de “título e modo”, no qual a instância que publica os títulos, não é aquela que os confecciona. Tampouco a instância que confecciona os títulos tem poder para, sozinha, trazer a eles os efeitos específicos da publicidade registral14. Da adequada interação entre ambas as instâncias surgem externalidades positivas que vão por sua vez às raízes de todo o sistema, justificando, por exemplo, que o notário seja de livre escolha do cidadão, mas o registro vinculado15.
Ademais, em um sistema em que os vícios eventuais do título transcendem à tábula registral – diga-se, um registro “causal” -, não sendo a publicidade suficiente para sanar defeitos não expressos no registro, avulta a importância de que o momento de formação do título, não presenciado pelo agente de sua publicidade (o registrador), seja especialmente protegido de eventuais contestações futuras – exatamente, o papel do notário. De nada adiantaria se ter um bom registro em termos de publicidade se os títulos publicados fossem, intrinsecamente, contestáveis.
A separação de funções e diferentes formas de fé pública conformam, assim, não apenas a atividade individual de cada especialidade, mas todo o sistema em que imbricados os notários e registradores. As confusões conceituais que eventualmente surgem na matéria, trazendo aos registradores funções intrinsecamente notariais, ou ao contrário, aos notários funções publicitárias, são, mais do que uma questão individual de cada especialidade “atacada”, um desmonte de um sistema estruturado e finamente sintonizado que, no limite, se reverte em prejuízo a toda a população.
Compreendidas, de forma apropriada, as similitudes e distinções entre as atividades notariais e de registro, bem se perceberá a vocação notarial para a viabilização de prazo de reflexão aos declarantes e para o aconselhamento tendente a reduzir assimetrias informacionais; ao passo que a vocação registral está mais ligada à publicização de atos e à viabilização de que terceiros tenham conhecimento sobre uma determinada situação jurídica.
Fonte: Migalhas